As crises e a síndrome das capivaras



"Ele não se apercebe de que há com ele algo de errado
porque
uma das coisas que nele andam erradas
é não se aperceber de que há com ele
algo de errado
portanto
temos que ajuda-lo a aperceber-se
de que o fato de não se aperceber
de que há com ele algo de errado
é uma dessas coisas
que nele andam erradas..." - R.D. Laing - Laços

Aprendi que um sistema baseado no mercado e em capitais especulativos entra em crises cíclicas (ou em ondas), assim como a noite vem depois do dia, que chove mais em determinadas épocas do ano e que surgem temporais devastadores em algumas regiões do planeta.  

         Esta crise brasileira de 2014, que começou no mundo inteiro em 2008, me fez lembrar que nos anos 70 ou 80 dezenas de capivaras foram encontradas mortas próximo à Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul. E que, alguns meses depois os jornais anunciaram que uma equipe de cientistas conseguiu desvendar a origem daquele estranho fenômeno. Diziam eles: com a escassez de alimentos na região, as capivaras acabaram comendo umas às outras.

Este exemplo do reino animal revela que uma crise humana também pode ser analisada desse ponto de vista — da escassez — mas que existem outras maneiras de analisar uma crise. Ou seja: ela pode ser fruto de uma crise ética, ou de uma crise de consciência, da crise de valores e até de uma crise da criatividade, como, por exemplo, uma falta de entendimento de que é preciso realizar um pacto entre uma parte da sociedade para garantir direitos e avançar naquilo que as circunstâncias históricas permitem (aquilo que Antonio Gramsci, que lia Hegel e Engels, chamou de formação de um Bloco Histórico de classes). 

Uma questão importante para a compreensão das crises é a percepção de que elas não possuem uma causa única e nem acontecem de uma forma isolada, umas das outras. Ou seja, que de uma forma quase invisível elas acabam promovendo uma escalada de ações e de reações, de explosões e até de algumas atrocidades que muitas pessoas não querem saber os seus motivos. Numa sociedade acostumada com a banalização da violência, do medo e do ódio, é comum encontrar pessoas que elogiam a força bruta e gostam de provocar a inteligência das pessoas mais sensíveis. Como nos filmes e seriados de Hollywood, cidades inteiras começam a ser ameaçadas por “malucos" e reagem apavoradas, com a intenção de serem salvas por um super-herói ou por um “Salvador da Pátria”. 

Essas pessoas não conseguem ultrapassar a fase infantil das histórias em quadrinhos e caem — ingenuamente ou não — em velhas e conhecidas armadilhas. Elas ainda sentem medo quando o diabo, o bicho-papão, o cientista maluco, o Jason, o minotauro, os lutadores de UFC, os Malafaias e os Bolsonaros aparecem nas redes sociais ou na televisão. Como se fossem crianças esquecem que possuem uma capacidade de aprender e a elaborar raciocínios mais complexos, e assim reproduzem o medo e valores absurdos nas escolas, igrejas, redes de TV, jornais, blogs, revistas, amigos e nas famílias. 
Elas formam e contribuem para a criação de uma grande massa de pessoas desinformadas, que não entendem as crises de escassez econômica, ética, moral e política — e passam a procurar um culpado pela sua crise particular.  Como na Alemanha nazista e na Itália fascista, na maioria das vezes escolhem alguma cultura/etnia ou liderança política, partidos políticos e organizações sindicais, movimentos sociais e até a própria justiça, para criticar e desmoralizar, desde que essa não lhes seja favorável. O direito a julgamento é ignorado, pois elas não estão dispostas a ouvir o argumento dos acusados e elogiam delações de ladrões — tipo Barrabás —, acusações levianas e propagam essas suspeitas etc. 

No Brasil, pessoas com mais de 30 anos de idade já atravessaram crises semelhantes, mas isso não quer dizer que elas aprenderam alguma coisa com essas experiências. Poucas lembram, mas não falam, até onde uma crise aguda pode levar as multidões. Aquelas que não reconhecem as crises cíclicas - independente de posição ideológica - costumam agredir as que se revoltam contra as crises, e isso é um triste sinal de que nenhuma delas aprendeu com os livros e com as crises anteriores.

E o que isso tudo tem a ver com as capivaras e a escassez de alimentos? É que muitas pessoas vivem somente para o presente, não entenderam o passado e, assim, não conseguem imaginar um cenário futuro. Por se preocuparem apenas com o presente, nunca param para refletir e aprender sobre os motivos da crise que estamos vivendo. Sentem medo do futuro, pois em função da escassez, da alta dos preços e das suas limitações intelectuais (por que não?), o futuro acabou se tornou algo inseguro e incerto. 

Não querem saber, por exemplo, se os freeshops de Artigas, Rivera, Acegua, Río Branco e Chuy, no Uruguai – cuja maioria é de empresas multinacionais - estão vazios em função da subida dos juros nos EUA e que houve uma fuga do capital especulativo para aquele país, pois lá essas mesmas empresas lucram muito mais. Não entendem que muitas empresas e os banqueiros internacionais estão interferindo na cena política nacional para defenderem os seus velhos privilégios, pois o velho poder econômico está sendo ameaçado. E quando um país entra em perspectiva de tornar-se uma das grandes potências mundiais, aí é briga para “cachorro grande” (ou capivara grande). Os “gerentes” nacionais utilizam todos os meios possíveis para gerar pânico e histeria no cotidiano da população local, desde subir o preço dos alimentos ou desabaster as prateleiras dos supermercados, até bombardear as famílias com notícias negativas durante meses e meses, por meio dos jornais e dos canais de televisão. Se for véspera de um período eleitoral, aí sim que  o bombardeio se tornará insuportável, ao ponto de gerar e propagar irritações e histerias nos bares, nos lares e nas redes sociais. 

Neste contexto de crise, a luta contra a corrupção sempre ressurge, e se torna um prato cheio de ódio e de irracionalidades, com ameaças ao básico direito de “presunção da inocência” de uma pessoa. Como muitas estão desesperadas e "ameaçadas" pelas crises, já não param para pensar que corruptos podem estar querendo se passar por "bons meninos", que a sonegação de impostos também representa um desvio de verbas que poderiam ser destinadas à saúde, à educação e a outras áreas importantes para a própria população. Acreditam que quem está no governo possui todo o poder de mudar “as coisas”... Aprenderam na escola que existem três poderes, mas acreditam mais na televisão, pois ainda estão descobrindo as funções do Congresso e do Judiciário. Repetem em coro: "não gosto de política",  “a política é uma coisa ruim” e "nunca precisei dos políticos". No período de fartura o mérito era todo delas, mas no de crises é do governo de plantão e dos políticos. Mesmo assim, apesar de tudo, a vida  sempre será um processo vivo e dinâmico que ensina as pessoas que resolvem compartilhar suas experiências e prestam atenção aos fatos e a repetição dos fenômenos. Por isso, não dá para desistir!
Dá para aprender que “as coisas” e as circunstâncias mudam! Por exemplo: se antes os banqueiros e empresários compravam políticos e sindicalistas para defenderem as suas pautas políticas, agora eles já estão atuando no centro das disputas – é caso do Paulo Skaf, empresário e presidente da FIESP, candidato pelo PSB ao governo de São Paulo, em 2010, de Donald Trump, empresário, investidor e personalidade da mídia norte-americano, e candidato a presidente dos Estados Unidos nas eleições de 2016, e também do recém eleito empresário-presidente da Argentina, Maurício Macri. Ou indicando os seus representantes para fazer parte dos governos – como é o caso do Joaquim Levy, diretor-superintendente do Bradesco Asset Management (Bram), como ministro da Fazenda do Brasil. Todos apostam na alienação de setores das “classes médias”, que vacilam, com medo de não conseguir pagar as dívidas ou de perder o que conquistaram, sempre com o apoio de setores mais conservadores das igrejas e da sociedade.

Como foi visto, com a escassez dos alimentos, a alta do dólar, o aumento do valor das prestações do carro e da casa própria, assim como da diminuição do consumo, essa crise política e econômica também gera uma crise ética e cultural, e que sua compreensão é bem mais complexa do que uma simples partida de futebol, de uma disputa por siglas partidárias e/ou por crenças e valores religiosos. Essas ondas ressurgem de tempos em tempos e é preciso mergulhar no fundo do fundo do fundo das crises “cíclicas” e/ou “em ondas” do sistema capitalista para conseguir superá-las.
O desafio de quem não quer alimentar o ódio, o pânico e o canibalismo político-cultural é ultrapassar a fase da crítica pela crítica e também deixar de ser pautado pela grande mídia ou por comentários provocativos nas redes sociais. Esses medos, assim como as ameaças e as intrigas, perderão peso quando pessoas alegres e propositivas tomarem a iniciativa. Não adianta dizer que tal pessoa não entende isso ou aquilo, pois o problema dela é exatamente este: ela não entende o que está se passando em sua volta e prefere orar apenas pela sua prosperidade individual (é um egoísta divino).

Não há nada de errado em se indignar e criticar quem está incentivando o ódio e a alienação das pessoas, mas ficar apenas adjetivando a alienação, se vangloriando para os amigos mais próximos, ou postando provocações, desilusões e lamentos no Facebook deveria ser considerado como uma atitude de um(a) cidadão/cidadã ultrapassado(a) no seu próprio tempo. Estamos vivendo um momento da história com muitas informações disponíveis e, por isso mesmo, está mais do que na hora de compartilhar conhecimentos com pessoas que não pertencem aos mesmos círculos de amizade, pois não serão os mais rápidos que sobreviverão, nem os mais fortes, e sim os que ousarem, forem criativos e demonstrarem uma grande capacidade de argumentação, de convencimento e, principalmente, de organização.

Ricardo Almeida
Porto Alegre, março de 2016.