Reflexões sobre a jornada do filme Fronteriz@s nas instituições de ensino de Nuestra América

               

A trajetória do filme Fronteriz@s em salas virtuais durante a fase mais crítica da pandemia permitiu que a equipe de diretores, produtores, roteiristas e atores dialogasse com pesquisadores de diferentes instituições de ensino sobre as temáticas abordadas nos cinco episódios do longa-metragem.

A partir de temáticas específicas, destacadas pelo público, os roteiristas, os diretores, os produtores e alguns artistas se revezaram respondendo perguntas, trazendo novas reflexões e, inclusive, revelando novos sentimentos, que pareciam comuns entre os participantes.

Durante este processo de trocas, tanto a equipe do filme como os interlocutores revelaram uma constelação de conceitos sobre as fronteiras e formaram um espelho multifacetado de olhares, um verdadeiro caleidoscópio de sentimentos de pertencer a diferentes culturas de Nuestra América, do Brasil ao México, da Argentina à Bolívia, do Paraguai ao Uruguai, do Equador até onde as redes sociais alcançaram.

Alguns olhares que consideravam apenas o aspecto nacional se depararam com outros que também enxergavam o fenômeno do hibridismo cultural e da transculturação que sempre ocorreu nessas regiões de fronteira. Os olhares “de fora”, aos poucos foram se transformando em olhares “de dentro” e desconstruindo velhos conceitos que estavam sendo reproduzidos, tratados como “naturais” e não como “culturais”, e substituídos por outros que até então eram desconhecidos ou pouco divulgados.

Por exemplo, a estudante Ingrid Torres Contreras, de Barcelona, afirmou:  “se vocês falam portunhol, aqui nós falamos em ‘catanhol’ (catalão com espanhol)”. Já o professor Edivaldo González Ramírez, da Facultad de Filosofía y Letras, da Universidade Autônoma do México, destacou que “o filme nos faz pensar em outras formas de relacionamentos humanos, pois muitos fazeres também são realizados em espaços públicos. No episódio La Sociedad, há quem se dedique à cozinha, mas também à dança, à pintura etc., em uma construção que vai muito além dos Estados nacionais”. Sobre as questões da discriminação e da violência nas fronteiras, que aparecem no episódio Peregrinus, a professora Karla Muller, da Universidade Federal do Rio grande do Sul, pergunta: "será que este espaço da fronteira teria que dar conta disto? E concluiu dizendo que "existem outras tantas cidades que não são fronteiriças e que também há um desrespeito às orientações sexuais. Por que a fronteira tinha que dar conta de todas as diversidades?"

É importante destacar que, em muitas intervenções, as fronteiras eram vistas apenas como limites nacionais, mas depois desta grande jornada do Fronteriz@s, elas também passaram a ser vista como territórios de integração cultural.

Enfim, foi a partir desse tipo de temáticas trazidas pelo público, seja da área da arquitetura, da geografia, da sociologia, da comunicação, das línguas, das relações internacionais, das letras ou da antropologia, que se formou um fio condutor capaz de fomentar importantes reflexões sobre relações de intercâmbio, de cooperação e, principalmente, de convivência cultural entre os povos e também sobre a diversidade cultural que compõe estes e outros territórios.

Para provocar as reflexões e alimentar os diálogos, o filme foi liberado durante alguns dias para que professores e estudantes preparassem os encontros. Foi assim junto ao programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos da UNILA, ao Mestrado em Estudos Fronteiriços da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, ao Grupo de Estudos Interdisciplinares das Fronteiras Amazônicas da Universidade Federal de Rondônia, à Rede Interuniversitária do Mercosul (que envolve professores e estudantes de diferentes países), à Jornada Científica do LEAUC, promovida pelo Laboratório de Estudos do Ambiente Urbano Contemporâneo, no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP), ao Cine Clube do Instituto Federal de Santa Catarina, campus São José, à Cartelera Cultural FFyL – da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Autônoma do México, ao Cine UFPel, da Universidade Federal de Pelotas, RS, à Secretaria de Cultura e o El Rule Comunidade de Saberes, ambos da Cidade do México, à FURG – Fundação Universidade de Rio Grande, campus Santa Vitória do Palmar, RS, ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Afrobrasileiros e Indígenas , IFSul campus binacional Santana do Livramento-Rivera, à Faculdade de Humanidades da Universidade da República, de Montevidéu, à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas e ao Festival Internacional de Cinema da Fronteira, de Bagé, no Rio Grande do Sul, além de organizações sindicais e de coletivos culturais.

Esse ambiente de trocas acabou formando uma rede de produtores de cinema na fronteira Brasil-Uruguai, agora interconectada com os pesquisadores de diversas regiões e países.

Ricardo Almeida. Produtor geral do longa-metragem Fronteriz@s

O golpe de 1964 para iniciantes (e para os desmemoriados)


A história é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue

Chico Buarque e Pablo Milanes

Os monstros saíram novamente do armário. Poderia ser mais uma história de ficção, se tudo não estivesse registrado em relatórios oficiais da CIA, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - e da Comissão Nacional da Verdade. Seria uma viagem ao passado se aquela tragédia de 1964 não tivesse sido transformada numa grande farsa. Afinal, houve um golpe civil-militar no Brasil? Será que havia uma ameaça comunista em 1964? É preciso desmitificar essas narrativas dos militares de plantão e colocar argumentos baseados em fatos fáceis de comprovar (uma pesquisa rápida no Google) na ordem dos acontecimentos e nos seus devidos lugares.
Assim, este artigo propõe uma busca pela verdade por meio de 21 pequenas reflexões que possam contribuir para esclarecer as novas gerações, os mentirosos e os desmemoriados sobre os 21 anos de regime militar no Brasil:
1.    O governo João Goulart foi derrubado com uma forte oposição no parlamento e na grande mídia da época (rádios e jornais) e com pouquíssima resistência popular. Goulart era um advogado proprietário de terras no Rio Grande do Sul e queria fazer no Brasil o que a Europa e os EUA já tinham realizado havia mais de 150 anos: fortalecimento da indústria nacional, reforma agrária para fixar as famílias no campo, aumentar e diversificar a produção de alimentos, redistribuição de renda, aprovação de uma legislação de caráter trabalhista, ampliação da oferta de educação gratuita e de qualidade, além de outras reformas burguesas e democráticas;
2.    Um pouco antes, em 1959, a sociedade conservadora e conspiradora havia criado o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que teve dois braços de atuação política: a) a PROMOTION S/A, uma agência de publicidade encarregada de disseminar a propaganda política nas estações de rádio, jornais, revistas e canais de televisão; b) a Ação Democrática Popular (ADEP), encarregada de financiar as campanhas eleitorais e eleger os seus representantes nos legislativos e governos de todo o país. Os recursos provinham da CIA, de empresas multinacionais ou “nacionais” associadas ao capital estrangeiro.  Em 1961, foi criado o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que reunia a elite do empresariado brasileiro, diretores de empresas multinacionais, dirigentes das associações empresariais, militares, jornalistas, intelectuais, mulheres conservadoras e jovens tecnocratas;
3.    Assim como nos dias atuais, para explorar o povo e vender as riquezas do país, essas organizações formaram o núcleo conspirador do golpe e utilizaram as bandeiras anticorrupção e de ameaça do comunismo, pois assim elas conseguiam desviar a atenção e amedrontar as pessoas que não estavam bem informadas sobre as disputas em curso. No final de 1963, estava formado um cenário de polarização política e o governo Goulart não conseguia aprovar mais nada no Congresso;
4.    O partido que tinha a maior base eleitoral entre os operários urbanos e os pequenos e médios agricultores era o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Getúlio Vargas. O seu programa propunha principalmente o desenvolvimento industrial, a nacionalização dos recursos naturais e mais investimentos em educação pública; 
5.    A luta armada estava fora dos planos dos partidos de esquerda. Os dois partidos comunistas (PCB e PCdoB) defendiam uma revolução democrática burguesa e anti-imperialista no Brasil que, segundo alguns clássicos do marxismo, seria uma etapa necessária para a industrialização do país e assim criar uma classe operária, para depois lutar pelo socialismo;
6.    O mundo vivia um período de Guerra Fria, com intensas disputas econômicas, diplomáticas e ideológicas entre os EUA e a URSS, e pela conquista de territórios;
7.    Havia movimentos pela reforma agrária, como as Ligas Camponesas, no nordeste, e a entrega de títulos a agricultores sem terra, no Rio Grande do Sul. Também foram realizadas algumas estatizações de empresas norte-americanas, como foram os casos da Light,  ITT, Bond and Share, entre outras;
8.    Em 1962, o presidente João Goulart assinou a Lei da Remessa de Lucros, que limitava o envio do lucro das empresas estrangeiras para o exterior, mas a regulamentação da lei só ocorreu no início de 1964 (apenas dois meses antes do golpe);
9.    A ditadura militar acabou com os partidos políticos, cassou 173 deputados e retirou os direitos políticos de 509 opositores e decretou uma forte censura à imprensa e às artes em geral. Foi criada a Operação Bandeirante (Oban), um centro de informações e investigações, e  o DOI-Codi, um órgão de repressão (e tortura) à opositores políticos;
10. Foi implementada uma reforma educacional de conteúdo ideológico e tecnicista, tanto no ensino básico como no ensino superior. As universidades foram enquadradas no famigerado acordo MEC-USAID - United States Agency for International Development - que fragmentou as faculdades e perseguiu os estudantes que se organizavam para resistir;
11. Milhares de pessoas foram exiladas, políticos, professores, militares e servidores públicos foram cassados e centenas de “opositores” foram mortos e “desaparecidos” pela ação de grupos militares e paramilitares;
12. A Rede Globo foi fundada um ano após o golpe e cumpriu um papel de padronização ideológica da “opinião pública”, em todo o território nacional;
13. As ações armadas de pequenos grupos de esquerda ocorreram bem depois do golpe, principalmente após 1969, quando os generais decretaram o Ato Institucional Nº 5, o AI-5 (em 1968), que acabou com todos os direitos civis constitucionais, proibindo reuniões, manifestações, revogando o habbeas corpus e permitindo prender sem um devido processo legal;
14. Com o auxílio da CIA, os militares brasileiros exportaram golpes de Estado e métodos de tortura para outros países da América do Sul (Uruguai e Chile, em 1973, e Argentina, em 1976) e, apesar da farta documentação e provas, até hoje não foram condenados por estes crimes;
15. Os governos militares abriram as portas para a exploração das riquezas naturais do Brasil e dos demais países de Nuestramérica, para a implantação empresas multinacionais, com o objetivo de exportar a matéria-prima e se beneficiar de mão-de-obra barata;
16. A dívida do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI) cresceu vertiginosamente, com juros exorbitantes, pois o plano dos golpistas exigia investimentos em infraestrutura para a instalação de empresas estrangeiras e para tornar o país ainda mais dependente;
17. O general Golbery do Couto e Silva, por exemplo, um dos cérebros do regime militar, formulou a Doutrina de Segurança Nacional, que buscava o alinhamento do Brasil com os EUA e a luta contra o “inimigo interno”, criou o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e, por estranha coincidência, presidiu a filial da empresa norte-americana Dow Chemical para toda a América Latina, uma das maiores fabricantes de agrotóxicos do mundo. Só para ter uma ideia, em 2015, a Dow Chemical uniu-se à Du Pont, ampliando os seus negócios na área de plásticos e sementes, ultrapassando o faturamento da Monsanto;
18. As empresas brasileiras nas áreas de energia, da construção civil e do agronegócio foram a que mais enriqueceram, pois desde aquele tempo elas estiveram sintonizadas com a estratégia de dominação norte-americana;
19. Com a priorização do agronegócio, milhões de famílias foram expulsas do campo e formaram imensos cinturões de miséria nas pequenas, médias e grandes cidades. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2015), atualmente 84,72% da população brasileira vivem em áreas urbanas e apenas 15,28% vivem em áreas rurais. A região Sudeste possui o maior percentual de população urbana (93,14%) e a região Nordeste conta com o maior percentual de habitantes vivendo em áreas rurais (26,88%);
20. Os principais lemas dos governos militares eram "Exportar é o que importa!”, “Primeiro crescer para depois dividir” e “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Tratava-se de um plano internacional de dominação norte-americana, inserido num mundo que já estava se globalizando;
21. Com a crise internacional do petróleo, a partir de 1973, com a alta significativa no custo de vida, o arrocho salarial e a inflação fora de controle, e com a denúncia de vários casos de corrupção, o regime militar começou a perder apoio político-eleitoral em vários estados brasileiros. Apesar das diversas manobras casuísticas, foram obrigados a promover uma “distensão lenta, gradual e segura”: em 1979 houve uma anistia parcial (os militares envolvidos em tortura também foram anistiados), a volta dos exilados e a liberdade partidária, em 1985, a eleição de um governo civil, via colégio eleitoral (Congresso Nacional), em 1988, o fim da censura prévia, com a promulgação da nova Constituição Federal e eleições diretas para presidência da República somente em 1989, 25 anos após o golpe.
É importante reconhecer que no período militar houve um longo processo de industrialização (globalizada) no Brasil e que, contraditoriamente, na década de 70 e 80, intensificaram-se amplos movimentos de resistência operária e popular, de diversas organizações sindicais, estudantis, agrárias e profissionais que lutaram por melhores condições de vida, por justiça social e pela volta da democracia. Ao mesmo tempo, a juventude brasileira respirou ares de rebeldia vindos dos protestos contra a Guerra do Vietnã e do Festival de Woodstock, nos EUA, e das manifestações do Maio de 68, na França.

Existem diversos livros e uma farta documentação oficial que comprovam essas afirmações, mas é preciso remexer mais fundo no passado para combater os mal-intencionados, pois o golpe de 1964 não passou de um plano de dominação econômica, politica e cultural do capitalismo internacional. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é mera coincidência, pois ainda há uma orquestração por parte dos EUA, na qual a Rede Globo cumpre o seu papel ideológico estratégico e o STF foi transformado num enfeite institucional. No entanto, existem importantes diferenças: a sociedade civil está mais organizada, há uma intensa troca de informações em âmbito nacional e internacional, graças à internet, e existe uma forte resistência de vários países à violação dos direitos humanos e à apologia aos crimes de Estado.

Como as novas gerações possuem muito mais informações do que as que viveram em 1964 e a recente experiência democrática ainda está latente na memória do povo brasileiro, pode ser que ocorra uma multiplicação dessas reflexões nas reuniões familiares, nos condomínios, nas associações de bairros, nos sindicatos, nas organizações profissionais e nos diferentes coletivos. Se for assim, talvez num futuro próximo possamos deixar para trás mais um período triste da história do Brasil, e desta vez, quem sabe, com o julgamento e a condenação dos vendilhões da Pátria.
Para finalizar, é bom lembrar que o golpe civil-militar ocorreu no dia 1º de abril – Dia dos Bobos ou da Mentira – e não no dia 31 de março, como dizem as pessoas mal informadas. Em nenhum desses dias existe algo a ser comemorado, muito pelo contrário... Mas é preciso refletir junto a quem não viveu ou esqueceu este passado, sob pena de ficarmos preso a ele, mas também para nos libertarmos das mordaças, dos traumas e das mentiras que voltaram a ser repetidas.
P.S. Este artigo não tem a intenção de esgotar a reflexão sobre o golpe de 1964, e sim a de compartilhar um roteiro de pequenas memórias coletadas junto a um grupo de amigos e amigas, via Whatsapp. Está sendo publicado em memória do jornalista Vladimir Herzog, do metalúrgico Manuel Fiel Filho, do estudante Edson Luis de Lima Souto e de tantos outros brasileiros e brasileiras que foram assassinados e/ou permanecem “desaparecidos”.

O Brasil à espera de uma faísca


Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança.
 Chico Buarque
Estamos cansados de saber que a grande maioria do povo brasileiro diz que não gosta de política e que vota apenas por obrigação. É muito fácil identificar pessoas que votam e depois não acompanham a ação dos seus eleitos. Bertold Brecht fez uma constatação nesse sentido quando afirmou que o analfabeto político “não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio depende das decisões políticas”. No entanto, nessa afirmação, o poeta não orientou os seus leitores sobre como essas pessoas poderiam aprender a se interessar por política.
Claro, muitos de nós sabemos que somos  governados por pessoas que gostam de política e que mesmo as questões mais simples são decididas pelos governos, pelos parlamentares (municipais, estaduais e federais), pelos juízes (em todas as esferas) e pelos anunciantes dos jornais, rádios e TVs do país inteiro. Mas, será que a esquerda brasileira está contribuindo para esclarecer a população sobre a atuação de cada um desses “agentes” reais?
Salvo alguns movimentos rurais, como a Via Campesina e sua rede de organizações setoriais, e urbanos, como o MTST e MNLM, por exemplo, está claro que existe pouca ação político-pedagógica permanente e participativa! Inclusive, uma parte significativa da nossa esquerda costuma criticar o povo (em abstrato) quando lhe convém e a elogiá-lo quando este mesmo povo apoia as suas políticas.  Eis um exemplo: quando Lula governava o país e tinha mais de 80% de aprovação, diziam que os brasileiros não desistiam nunca e que tudo estava “no seu lugar”. Bastou acontecer uma série de “marolinhas” e uma derrota eleitoral para o povo passar a ser chamado de "pobre de direita", de "coxinha" e de não sei mais o quê... Afinal, de qual povo nós estamos falando? É aquele mesmo da época de Lula ou será que essas pessoas mudaram com o vento?
Entendo que o uso indefinido desses adjetivos é uma atitude arrogante e suicida, pois desconsidera os fenômenos da opressão e da alienação dos indivíduos, seja pela exploração do trabalho ou pela falta de acesso aos grupos de reflexão etc. e tal. Essas atitudes também deixam claro que muitas pessoas defendem o legado de Paulo Freire, mas não assimilaram a sensibilidade das reflexões do mestre da práxis para a liberdade. Outras falam em Marx, mas nunca refletiram profundamente sobre as relações de trabalho ou os conceitos contidos nas Teses sobre Feuerbach ou nos Manuscritos Econômicos Filosóficos. Tem gente que, inclusive, faz “críticas psicanalíticas”, mas ainda não leu O Mal Estar na Cultura, de Freud, para não citar uma imensidão de importantes estudos sobre o corpo e a mente humana, produzidos em sua maioria no século 20.
Mas tudo bem, pois tudo é um processo permanente de ensino/aprendizado... Afinal, nós estamos recém experimentando aquela sensação de pertencimento a um movimento de lutas contra as injustiças, e a fase das críticas costuma anteceder a das ações coletivas. No entanto, para a superação desse estágio, é bom lembrar que nos anos 70 e 80 era possível questionar e discordar dos métodos de Che Guevara e de Marighela, por exemplo, mas que hoje isso se tornou quase que uma heresia e já não há espaço para aprofundar esse tipo de reflexão nos grupos de esquerda. Os partidos ainda seguem a lógica dos mandatos parlamentares, as organizações de base foram abandonadas, muitas pessoas estão abduzidas pelo “culto às personalidades” e perdemos o hábito de promover debates públicos em que seja possível ouvir o contraditório entre as próprias forças de esquerda.
Para não ser injusto, após a recente derrota para o projeto da extrema direita, estão sendo realizadas algumas importantes reflexões públicas, embora muitas ainda fiquem restritas ao meio acadêmico. Mas, no geral, para quem está do lado de fora, quem se informa apenas pelos programas de rádio, televisão ou pelas redes sociais, fica uma imagem de que ainda somos pessoas que só utilizam adjetivos e jargões, e que não temos propostas claras e nem paciência para o diálogo.
Creio que, se continuarmos assim, vamos atrasar o processo de reflexão pública sobre os temas  geradores de consciência política (temas que mudam conforme a conjuntura política, e que vão desde as questões morais, como a insensibilidade com a morte de uma criança, até as questões de direitos, como o desmonte da previdência pública, às ameaças à soberania nacional etc.) que sejam capazes de apaixonar e de educar o nosso povo. A falta do debate público no passado recente foi uma das razões que levaram as pessoas a não se sentirem parte, a oscilar conforme o vento, devido às crises econômicas, entre uma candidatura e outra ou a desistir da política, ao votar nulo ou se abster no dia das eleições. 
Vocês lembram que as eleições de 2014 foram polarizadas, e que Dilma venceu o candidato das elites econômicas com muitas dificuldades? Pois um olhar atento também vai perceber que naquele momento já estavam sendo articuladas algumas ações públicas pró-golpe: a Globo fez uma falsa autocrítica sobre a sua participação no golpe de 1964, o Aécio prometeu uma oposição sem tréguas, até fazer o governo “sangrar” e o Temer divulgou uma carta dizendo que já não se sentia parte daquele governo. Só faltava uma faísca para o descontentamento popular ser canalizado contra os governos “do PT”.
A faísca surgiu em 2013, em protestos legítimos contra o aumento da passagem de ônibus em algumas capitais do país. Hoje sabemos que a Rede Globo (leia-se, os seus patrocinadores) aproveitou aquelas manifestações para destacar a violência da repressão militar contra os estudantes e, ao mesmo tempo, incentivar setores das “classes médias” a sair de casa para defender a Lava-Jato e denunciar a corrupção “do PT”. Mas existe um ponto bastante negligenciado pela esquerda (em alguns casos, intencionalmente), que teve uma dimensão simbólica muito grande: as políticas econômicas do segundo mandato de Dilma foram decisivas para silenciar a maioria do povo trabalhador. Não esqueçam que, embora o Brasil passasse a ser a sexta economia do mundo e o nosso futuro, era de muita esperança, o país ainda apresenta uma das maiores desigualdades sociais do planeta, e que uma simples faísca pôde e pode (a qualquer momento) gerar um incêndio de grandes proporções.
Apesar de tudo, e a partir da memória dessas experiências estamos refazendo a história e avançando na organização de pequenas ações de base. No entanto, percebo que a maioria dessas ações ainda se baseia nas lembranças do período Lula, nos desastres do governo Temer e deste governo militarizado. Foi por isso que eu escrevi num tom de advertência, pois sinto que falta uma reflexão profunda sobre o papel do Brasil no cenário internacional e sobre os fenômenos da alienação, da liberdade e da consciência política dos brasileiros.
Se a sociedade conservadora aprendeu com as derrotas sofridas nos primeiros anos do século 21 e trabalhou na base da sociedade, seja por meio dos pastores neopentecostais, dos milicianos ou patrocinando as fakenews, nós temos de enfrentá-la utilizando práticas e teorias que podem dar certo, organizando com antecedência as nossas mobilizações e diferentes atividades culturais e políticas.
Este desafio passa pela superação do vício nas redes sociais, que está nos transformando em seres apenas das palavras escritas e não das ações. Estamos convivendo diariamente com curtidas, sorrisos e com carinhas de desgosto, mas isso não significa que exista um comprometimento prático com outras pessoas. Como as nossas melhores experiências de mobilizações livres ficaram nos distantes anos de 70 e 80, algumas pessoas até falam em voltar às origens dos partidos de esquerda, mas não percebem que essas origens foram e são os movimentos sociais e as organizações de base. Ou seja, aquilo que falamos na internet deveria ser dito ao guarda da esquina, à atendente de telemarketing, ao motorista da Uber e aos dirigentes sindicais e comunitários, seja na fila do banco ou na ida para a escola.
Com a perda de direitos e a precarização do trabalho, com o desmonte da previdência pública e a venda das nossas riquezas, o povo brasileiro começou a entender a relação entre as forças econômicas e a política. No entanto, é preciso aprofundar essas reflexões, pois existem diversos elementos que podem contribuir para esclarecer a abrangência do golpe de 2016. Por exemplo, o mundo inteiro sabe que a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos utiliza estratégias de desestabilização política para promover a pilhagem e a ascensão de regimes autoritários nos continentes, que Dilma e a Petrobrás foram alvo direto de espionagem pelo governo estadunidense, que o juiz que condenou Lula sem provas fez treinamento e palestrou por diversas vezes nos EUA, que um agente norte-americano assumiu publicamente que eles possuem bons apoios aqui no Brasil, que Steve Bannon, com recursos de caixa 2, ajudou a eleger Bolsonaro por meio de armadilhas, mentiras e intrigas, que depois o ex-juiz Sergio Moro aceitou ser o ministro da justiça do governo das fraudes e das fakenews, e que o capitão presidente é um verdadeiro aloprado, pois durante a sua posse agradeceu ao general Villas Boas pela sua eleição e que “tudo iria ficar apenas entre os dois”. Agora, já não falta nem mesmo um policial federal com o distintivo da polícia norte-americana, SWAT, para revelar a complexidade do golpe dado nos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras brasileiras.
As Caravanas Lula, as campanhas eleitorais do ano passado e o movimento #EleNão foram importantes para um acúmulo de forças, e as vigílias #LulaLivre e o movimento #MariellePresente seguem renovando a nossa esperança, mas o Carnaval de 2019, as manifestações do 8M - no Dia Internacional da Mulher, e a performance do presidente autoproclamado Zé de Abreu revelaram que o Brasil está a espera de uma faísca para incendiar novamente. Pensando nesta possibilidade, as forças de esquerda deveriam promover uma ampla reflexão sobre essas experiências e oxigenar a memória da sua militância, pois ela detém as nossas melhores referências e podem esclarecer o grande público quais são os interesses de classe, das categorias e dos setores que estão em disputa.
Ao reconhecer as autonomias e as possibilidades de convergências entre as diferentes propostas e expressões, poderemos iniciar um movimento horizontal e radicalmente democrático em cada estado e município brasileiros. No entanto, para isso ocorrer, será fundamental reunir pessoas que entendam que a política não é uma responsabilidade somente dos “políticos”, que a educação não é uma tarefa exclusiva dos professores, que os debates sobre economia não possuem unicamente um viés economicista e que as manifestações culturais não se limitam às artes.
Enfim, não faltam desmandos deste novo governo para serem denunciados, y todas las armas son buenas para acabar com os falsos mitos, desde a pesquisa histórica até a crítica, a sátira e a ironia - presenciais e digitais. Mas não podemos esquecer que houve um golpe de Estado de novo tipo no Brasil, que a maioria dos parlamentares foi eleita na base de fakenews patrocinadas (portanto, foi uma fraude) e que estamos no meio de uma disputa econômica, cultural e política de abrangência planetária. Quem continua sentado é porque ainda não assimilou que a economia e a política se globalizaram, que há uma crise das democracias representativas pelo mundo afora e que este período de transição está resultando, paradoxalmente, na radicalização da democracia (da participação direta) ou na ascensão de governos autoritários. Taokei? J
#LulaLivre
#MariellePresente
#EmDefesaDaSoberaniaNacional
#PeloFortalecimentoDosMovimentosRuraisEurbanos
                                                                         

Conflitos na fronteira? O buraco é bem mais em cima


As fronteiras são assim, dependendo do câmbio os brasileiros invadem as cidades das fronteiras com o Paraguai e com o Uruguai para comprar  produtos mais baratos, ou vice-versa. É comum ouvir histórias de brasileiros que migraram para um país vizinho em busca de uma vida melhor, mas também ouvimos pessoas que  reclamam quando algum estrangeiro decide vir trabalhar no Brasil.
Grosso modo, o Brasil, a Guiana Francesa, o Uruguai e a Argentina são os países da América do Sul que possuem os melhores sistemas públicos de saúde e de educação, e que, portanto, em função disso promovem um intenso fluxo de moradores nessas regiões de fronteira. Como o Brasil é o único que faz fronteira com quase todos os países da América do Sul (somente não faz com o Chile e o Equador), nós estamos sempre envolvidos em alguma polêmica transfronteiriça.
É fundamental entender que cada fronteira é singular e que as “trocas” se dão de forma diferenciada, sendo que o custo de vida, as oscilações do câmbio, a diferença no valor dos produtos e dos impostos, e até os amores definem a intensidade dos fluxos e também dos conflitos.
Em 2016, por exemplo, eu estive em Boa Vista, Pacaraima e Santa Elena de Uairén, na fronteira do Brasil com a Venezuela e los hermanos venezuelanos já estavam sendo tratados pela grande mídia brasileira como intrusos e eram identificados como sendo os principais responsáveis pela “bagunça” criada lá no estado de Roraima.
Como consultor contratado pela Unesco, em convênio com o Ministério da Cultura do Brasil, eu entrevistei diversas pessoas, de vários setores, para entender aquele caso específico e fiz algumas reflexões que talvez interessem a vocês. Vejam algumas delas e tirem as suas conclusões:
1. A Terra de Makunâima ou a Gran Savana, como é conhecida aquela região transfronteiriça, tem uma das mais lindas paisagens que eu já vi. Principalmente, a que contorna o Monte Roraima, onde fica a morada de Makunâima.
2. Milhares de brasileiros atravessavam a fronteira para comprar combustível a um real o litro de gasolina, enquanto que no Brasil o produto valia aproximadamente três reais. Lá, o povo venezuelano pagava apenas 20 centavos por litro, e isso representava uma verdadeira tentação para os brasileiros.
3. Todas as farmácias, lojas, bares e restaurantes de Pacaraima (uma pequeníssima cidade brasileira próxima ao Monte Roraima) estavam vendendo somente farinha, arroz e açúcar por valores que atraiam milhares e milhares de venezuelanos.
4. Os supermercados venezuelanos da fronteira estavam desabastecidos e não tinham chances de competir com aquelas “ofertas” brasileiras.
5. Como o ex-senador Romero Jucá é um dos principais articuladores políticos naquela região, eu fiquei desconfiado de que aquela “bagunça” poderia ter sido criada pelo grupo político dele, em busca de uma “intervenção federal”. Mas, eu nunca consegui provar nada, além de ouvir algumas suspeitas e convicções.
6. Sabemos que a Venezuela tem muito petróleo, mas aquela região também é rica em ouro, nióbio e em outras riquezas minerais.
7. Além disso, a vizinha Guiana (inglesa) também possui uma das maiores reservas de petróleo do mundo.
8. Portanto, há anos existe uma disputa geopolítica entre a China, a Rússia e os EUA pelo controle daquela região rica e estratégica, nas portas do Caribe e do Canal do Panamá.
9. Agora, um grupo que apoia o Bolsonaro assumiu o governo de Roraima e eu não consigo imaginar o que pode estar ocorrendo por lá. Só sei que o derrotado Jucá se juntou a eles e que juntos estão muito mais agressivos em relação às comunidades indígenas.
10. Os povos Pemón, entre eles os Macuxis, os Wapixanas, entre outros, assim como os Yanomamis  que vivem na outra fronteira, com a Colômbia, são povos de paz. Portanto, qualquer possibilidade de guerra será sempre patrocinada pelos homens brancos, em busca de terras para o garimpo (plano do governo Bolsonaro) ou para alguma monocultura de exportação.
11. Algumas críticas endereçadas ao governo Maduro podem estar corretas, mas não podemos impor de fora pra dentro uma “solução” que ignore o diálogo entre os venezuelanos e que crie uma situação de guerra… Ainda mais, se essa “solução” tem o protagonismo e a intromissão declarada dos EUA.
12. Uma fronteira fechada, como a dos EUA com o México ou a de Israel com a Palestina, sempre traz um sofrimento para as populações transfronteiriças.
13. Como há muito tempo as fronteiras do Brasil e dos demais países da América do Sul estão esperando por uma “ajuda humanitária”, as comunidades locais querem se fazer ouvir sempre que forem lembradas pelos governos nacionais e pela grande mídia.
Enfim, como as fronteiras são complexas e foram esquecidas aqui no continente, não podemos nos deixar influenciar apenas pelas imagens gravadas nestes territórios, pois existe um tipo de jornalismo que não perde por esperar (em busca de mais audiência e de violência).  Ou seja, o buraco é bem mais em cima: está na nossa capacidade de reflexão.
P.S. A sigla de Roraima é RR e não RO, como alguns jornais brasileiros estão publicando. RO é Rondônia, na fronteira com a Bolívia.