Muita gente ainda acha que era melhor viver nos anos 60, na época da Tropicália, da resistência democrática e dos grandes festivais. Quero lembrá-los(as) de que naquela época éramos vigiados e reprimidos por ditaduras militares no Cone Sul e pela Lei de Segurança Nacional, no Brasil. Então, como poderia ser melhor do que hoje? É fácil entender tal contradição quando se lê o ensaio A República do Silêncio, de Jean-Paul Sartre. A subjetividade desse texto expõe o sentimento daqueles que vivenciaram situações limites e as enfrentaram com inteligência e organização.
A República do Silêncio
Jean-Paul SARTRE
Les Lettres Nouvelles, 1944. (Tradução: Fernando Vidal Filho)
Jamais fomos tão livres como sob a ocupação alemã. Tínhamos perdido
todos os nossos direitos, sobretudo aquele de falar; insultavam-nos na
cara a cada dia e era preciso que nos calássemos; deportavam-nos em
massa, como trabalhadores, como judeus, como prisioneiros políticos; em
toda parte, nos muros, nos jornais, nos cinemas, reencontrávamos a
imunda e insípida fisionomia que nossos opressores queriam dar a nós
mesmos: por tudo isso, éramos livres. O veneno nazi penetrava até em
nosso pensamento, por isso cada pensamento justo era uma conquista; uma
polícia todo-poderosa buscava constranger-nos ao silêncio, por isso cada
palavra se tornava preciosa como uma declaração de princípio; éramos
caçados, por isso cada um de nossos gestos tinha o peso de um
engajamento. As circunstâncias sempre atrozes de nosso combate nos
colocavam enfim a viver, sem fardo e sem máscaras, esta situação
dilacerada e insustentável que se chama condição humana. O exílio, a
prisão, a morte sobretudo, que se mascaram habilmente em épocas felizes,
fizeram-se objetos perpétuos de nossa arreliação, e descobríamos que
não são acidentes evitáveis, nem mesmo ameaças constantes, porém
exteriores: era preciso ver nisso tudo nosso quinhão, nosso destino, a
fonte profunda de nossa realidade de homem; a cada segundo vivíamos em
sua plenitude o sentido desta pequena frase banal: “Todos os homens são
mortais”. E a escolha que cada um fazia de si mesmo era autêntica pois
se fazia em presença da morte, assim ela teria sempre podido se exprimir
sob a forma “Melhor a morte que…”. E não falo aqui dessa elite que
foram os verdadeiros Resistentes, mas de todos os franceses que, a cada
momento do dia e da noite, durante quatro anos, disse não. A crueldade
mesma do inimigo nos empurrava até os extremos de nossa condição e nos
constrangia a colocar questões que se escamoteiam em tempos de paz:
todos entre nós – e qual francês não esteve uma vez ou outra nessa
situação? – que conheciam um ou outro detalhe sobre a Resistência se
perguntavam com angústia: “Se me torturarem, eu agüentarei?” Assim, a
questão da liberdade era posta e nós estivemos no limite do conhecimento
mais profundo que o homem pode ter de si mesmo. Pois o segredo de um
homem não é seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o limite mesmo
de sua liberdade, seu poder de resistência aos suplícios e à morte.
Àqueles que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias de sua
luta trouxeram uma experiência nova: eles não combatiam à luz do dia,
como soldados; perseguidos em sua solidão, presos em sua solidão, no
abandono, na miséria mais completa eles resistiam às torturas: sozinhos e
nus diante dos carrascos de barbas feitas, bem nutridos e bem vestidos
que zombavam de sua carne miserável e a quem uma consciência satisfeita,
uma potência social desmesurada davam todas as aparências de ter razão.
No entanto, no mais profundo dessa solidão, eram os outros, todos os
outros, todos os camaradas da resistência que eles defendiam; uma só
palavra era suficiente para provocar dez, cem prisões. Esta
responsabilidade total na solidão total, não é isso o desvendamento de
nossa liberdade? Esse desamparo, essa solidão, esse risco enorme eram os
mesmos para todos, para os chefes e para os homens; tanto para aqueles
que levavam mensagens cujo conteúdo ignoravam quanto para aqueles que
decidiam sobre tudo na resistência, uma sanção única: o encarceramento, a
deportação, a morte. Não há exército no mundo em que se encontre
semelhante igualdade de riscos para o soldado e para o general. E é por
isso que a Resistência foi uma verdadeira democracia: para o soldado
como para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma
absoluta liberdade na disciplina. Assim, na sombra e no sangue, a mais
forte das Repúblicas se constituiu. Cada um de seus cidadãos sabia que
dependia de todos e que podia contar apenas consigo; cada um deles
desempenhava, em seu desamparo total, seu papel histórico. Cada um
deles, contra os opressores, empreendia ser si mesmo, irremediavelmente e
se escolhendo a si mesmo em sua liberdade, escolhia a liberdade de
todos. Esta república sem instituições, sem exército, sem polícia, era
preciso que cada francês a conquistasse e a afirmasse a cada instante
contra o nazismo. Encontramo-nos no presente à beira de outra República:
esperamos que ela conserve, à luz do dia, as austeras virtudes da
República do Silêncio e da Noite.
Muito bom o texto.Destaco: "[...]a cada segundo vivíamos em sua plenitude o sentido desta pequena frase banal: “Todos os homens são mortais”".
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