“Sopram ventos
desgarrados, carregados de saudade
Viram copos viram mundos, mas o que foi nunca mais será...”
Viram copos viram mundos, mas o que foi nunca mais será...”
Mário Barbará/
Sérgio Napp
“El olvido está lleno de memória...”
Mario Benedetti
“Nadie ignora que el Sur empieza del otro
lado de Rivadavia.”
Jorge Luis Borges
Sem
perceber os novos ventos que sopram ao sul do Brasil e al norte del Uruguay, vários artistas, jornalistas, professores e
intelectuais rio-grandenses continuam reproduzindo um forte sentimento
nacionalista (não estou me referindo aos tradicionalistas), baseado apenas nas
fronteiras políticas, e não nos hábitos e costumes culturais. Enquanto isso,
outros preferem exaltar as belezas e a imensidão do Pampa, mas não citam as
influências dos primeiros imigrantes que escolheram essas planícies e as suas
quatro estações do ano como seu habitat “natural”.
Muitos
gostam de destacar a origem “europeia” dos gaúchos/gauchos. Alguns até reconhecem os traços Al-andaluzes, bascos,
castelhanos, judeus e açorianos no imaginário del Sur. Outros tantos resistem e defendem as tradições e os
costumes dos povos de matriz africana. Mas ainda são poucos aqueles que
apresentam os pontos de vista dos povos indígenas. Em suma, são poucos aqueles
que apresentam uma visão ampla e holística dessa rica diversidade cultural.
Por
outro lado, livros publicados no exterior são pouco citados, assim como autores
que representam as culturas urbanas e/ou que tratam da formação do Estado e da
República brasileiros. Quase ninguém ressalta que desde meados de 1700 existem
relatos de cientistas, escritores, comerciantes e viajantes sobre as
características dos gaúchos/gauchos,
publicados principalmente no Uruguai e na Argentina, e que foi a partir de 1800
que se destacaram as obras mais divulgadas sobre a cultura do Pampa. Vejamos
alguns exemplos:
Entre
1820 e 1821, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire percorreu várias
regiões do Brasil, do Paraguai e da Província Cisplatina e escreveu Aperçu d'un voyage dans l'intérieur du Brésil la
Province Cisplatine et les missions dites du Paraguay, que
foi publicado em 1823 na França. Nesse relato, ele fez observações
e profecias sobre as tradições, os costumes, as paisagens, a fauna, a flora e as
políticas regionais. Uma década mais tarde, e antes de publicar A origem
das espécies, o inglês Charles Darwin também esteve explorando o
Pampa e descreveu vários costumes dos gaúchos/gauchos em seu livro de apontamentos Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo, publicado em 1838.
Em
1820, o uruguaio Bartolomé Hidalgo já havia escrito Cielitos gauchescos. Em
1843, o poeta argentino Hilario
Ascasubi publicou El
gaucho Jacinto Cielo, e Domingo Faustino Sarmiento lançou Facundo: civilização e barbárie, em que
descreve um caudilho que faz questão de manter os seus costumes e, a partir de
uma visão eurocêntrica e preconceituosa, apresenta algumas características de los gauchos: indomáveis,
violentos, cantantes, vaqueanos e rastreadores. Nesse livro o autor argentino
também se refere à imensidão do Pampa, que ele sequer conhecia. Em 1866, outro
escritor argentino, Estanislao Del Campo, publica a primeira versão de El
Fausto Criollo, baseado na obra de Goethe.
De 1868 a 1884, a Sociedade Parthenon Litterário,
formada por escritores e poetas rio-grandenses, publicou diversos jornais e
revistas que, defendendo uma visão republicana e abolicionista, abordavam temas
da história e da cultura gaúcha. No ano
de 1870, o cearense José de Alencar, também sem nunca ter pisado no Pampa,
publicou O Gaúcho, numa nítida
intenção de fixar alguns tipos regionais brasileiros e, influenciado pelo
Romantismo, reforça a ideia de que o gaúcho e a paisagem da região são a
extensão um do outro. Nessa época o argentino José Hernández, que também era um
homem urbano, exilado em Santana do Livramento, começou a escrever o épico Martín
Fierro, publicado em Buenos
Aires em 1872. Nesse livro ele se diferencia da visão colonizadora de Sarmiento
e retrata a peregrinação e as reflexões de um gaúcho abandonado à própria sorte, no meio de guerras e de
conflitos entre los hermanos.
Apenas no início do século 20, Simões Lopes Neto,
que também era urbano, publicou os seus Contos Gauchescos (em 1912) e as
Lendas do Sul (em 1913), nos quais exalta um sujeito do campo, que anda a cavalo e que
explica o mundo se utilizando de um linguajar próprio e relatando histórias
fantásticas. No entanto, trinta e quatro anos depois, o
psicanalista Cyro Martins retrata
esse mesmo homem na sua trilogia do Gaúcho à Pé (Sem rumo, Porteira fechada, Estrada nova) e, bem depois, em 1982,
no romance O Príncipe da Vila. Nessas obras, o
gaúcho já aparece marginalizado
pelo processo de industrialização e pelo crescimento desordenado das cidades.
Em 1920 fora fundado o Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul, fruto de um movimento cultural que publicava
revistas e fomentava o debate sobre formação
da identidade e a preservação da cultura gauchesca. E, em 1948, Manoelito de Ornelas publica Gaúchos
e beduínos - a origem étnica e a formação social do Rio Grande do Sul, no qual revela as raízes árabes da
linguagem, da música, da dança, da arquitetura, dos costumes e das tradições
gaúchas/gauchas. Entre 1949 e 1951, Érico Verissimo publica a sua trilogia O Tempo e o Vento, na qual aborda as
primeiras migrações no território, com a formação das vilas e cidades no Pampa
(O Continente). Nos outros dois volumes (O Retrato e O
Arquipélago), as famílias Terra e Cambará continuam as suas sagas e se
tornam protagonistas da modernização do Rio Grande do Sul, influenciando a
formação da República e do Estado Novo de Getúlio Vargas, quando a capital
ainda era a cidade do Rio de Janeiro.
Dito isso, fica bem mais fácil responder a algumas
perguntas, como: por que os pensamentos deterministas se tornaram hegemônicos
na cultura do Rio Grande do Sul? Afinal, foi José de Alencar e o movimento
tradicionalista que criaram a
representação “modelar” do gaúcho? O Rio Grande do Sul ainda pode ser
representado por uma cultura rural e pastoril? A obra de Érico Veríssimo pode
ser apresentada apenas pelo primeiro volume da sua trilogia? Por que as escolas
do Rio Grande do Sul não ensinam sobre as contribuições de autores estrangeiros
na representação do gaúcho/gaucho? Em
quais bibliotecas podemos encontrar as obras que tratam dos séculos 20 e 21?
Em alguns ambientes tornou-se uma tarefa delicada e
complexa refletir sobre essas questões. Em primeiro lugar porque os mitos
também precisam ser questionados, assim como a erudição acadêmica e o sistema
escolar que (juntos) há décadas formam crianças e adultos. Além disso, porque
uma abordagem transformadora exigiria uma leitura simultânea dos valores
simbólicos (mitos) com suas circunstâncias históricas (fatos), para evitar todo
tipo de simplificação. Portanto, a mudança não passa apenas pelos argumentos,
mas também pelo método a ser utilizado.
Na faixa de fronteira Brasil-Uruguai, por exemplo,
vem ocorrendo um processo prático e reflexivo sobre as simbologias do Pampa e a
integração cultural entre os dois países, que pode servir como referência para
outros movimentos artísticos e culturais. Todos os anos, artistas, produtores,
gestores, coletivos culturais e universidades organizam feiras binacionais de
livros, festivais binacionais de cinema, de teatro, de música popular e
erudita, de gastronomia etc., e assim construíram um calendário de oficinas e
de eventos híbridos e singulares. Essas atividades mantêm as suas autonomias e
convergem naquilo que for possível para promover e propagar o interculturalismo
que sempre existiu por ali.
No entanto, essa região ainda é reconhecida pelo
turismo de compras e pela preservação da cultura gauchesca, cujo imaginário
cultural segue alicerçado na época de ouro dos frigoríficos norte-americanos,
que movimentaram a economia regional e exportaram carne e seus derivados para o
estrangeiro. Essa cadeia produtiva foi desarticulada nos anos 70, durante a
crise da economia mundial, e foi com a redemocratização dos países do Cone Sul, nos anos 80, e depois com a
era das globalizações e o surgimento do Mercosul (1991), que as economias
locais começaram a se recuperar. Nessa época, empresários uruguaios e
estrangeiros abriram lojas de perfumes, whiskies e vinhos importados, sem pagar
impostos nacionais, as famílias de estancieiros continuaram plantando e criando
gado em menor quantidade, sendo que algumas optaram pelo cultivo de grãos, de
uvas e, mais recentemente, de oliveiras. Enquanto isso, outras apostaram no
turismo e na produção de energia eólica.
Se antes a economia regional estava baseada apenas
na agricultura e na pecuária, hoje ela encontra novas formas de produção.
Noventa por cento das pessoas residem em áreas urbanas, sendo que a maioria delas
possui uma bicicleta, uma motocicleta ou um automóvel. Algumas dormem em
colchões King Box e pilotam uma camionete Land Rover 4X4, equipada com
computadores, para administrar o trabalho de homens humildes que vivem no
campo. Quase todas usam um celular e/ou possuem um ou mais aparelhos de TV com
antena parabólica em suas casas. Seus filhos navegam diariamente na internet, e
quase todas as escolas estão equipadas com modernos computadores e conexões
WiFi. Isso, por si só, revela que houve uma mudança de hábitos e de
costumes entre os habitantes dessa região.
Para que essa reflexão seja compreendida
além-fronteiras, será preciso revolver a memória das pessoas e perguntar: como os descendentes de Cervantes descreveriam os parques
eólicos que mudaram a paisagem do Pampa? O que diriam os admiradores de
Garibaldi sobre os grandes navios fabricados no Polo Naval de Rio Grande? Como os
discípulos de Simões Lopes Neto representariam os trabalhadores e as
trabalhadoras da Pelotas atual? Como os leitores do psicanalista Cyro Martins descreveriam
o modo de vida nos bairros e vilas das cidades gaúchas? Será que alguém se
atreve a escrever sobre os herdeiros das famílias Terra e Cambará? Chimangos e
maragatos comprariam nos freeshops de Artigas, Rivera, Acegua, Río
Branco e Chuy?
Essas
respostas hipotéticas precisam ser confrontadas com a prática das pessoas para
revelar suas consistências e veracidades, pois muitos raciocínios dicotômicos e
excludentes insistem em se manifestar nas
rodas de chimarrão, nas escolas, nas universidades e nos meios de comunicação, e esses ainda não reconhecem a diversidade
cultural rio-grandense. Por enquanto, se destacam as disputas entre a verdade e
a não verdade, que reproduzem velhos vícios ao tentarem definir uma identidade
única para o povo rio-grandense.
Portanto, o desafio passa pelo
reconhecimento e valorização do diálogo com as culturas tradicionais (indígena,
africana, açoriana, mourisca, judaica etc.) e também com as novas
apresentações/representações da realidade, pela superação da simples crítica ao tradicionalismo e do riso frente ao
espelho, cuja imagem do todo reflete apenas o gentílico e/ou o nacionalismo. Ao
não refletir sobre as origens de seus costumes, muitas pessoas continuam mantendo
e reproduzindo um grande simulacro da memória, e essa desmemória faz com que os homens e mulheres percam as suas referências
históricas e afetivas.
A
maioria das pessoas ainda não assimilou que novos ventos estão soprando no
planeta e que o Rio Grande do Sul está muito mais urbanizado e globalizado do
que antes. Milhões de pessoas vivem nas cidades, e as novas gerações estão
dialogando naturalmente con los hermanos, assim como com outras
regiões do mundo. Assim, os estereótipos criados por necessidades de uma época
estão sendo substituídos por novas representações de uma realidade que já se
inaugurou. Por esse motivo, a elaboração de planos e de reflexões
acadêmicas não é suficiente para realizar a emancipação cultural tão desejada,
pois tal movimento requer ações dialógicas e propositivas que tratem a arte e a
cultura como processos históricos, vivos, objetivos, subjetivos e, ao mesmo
tempo, planetários.
Somente quando esses
ventos desgarrados sopram pelos campos e cidades da região, as fronteiras artísticas
e culturais se movimentam em uma, duas, três ventanias... Em milhares de ventanias!
E todos os tempos se misturam num tempo só. As imagens urbanas e literárias,
como as de Dyonélio Machado, Caio Fernando de Abreu, Moacyr Scliar e Aldyr
Garcia Schlee revelam as singularidades e as contradições dessa complexa realidade,
e a verdade deixa de ter um lado só. As ilusões das aparências ficam expostas, assim
como algumas desventuras humanas... E quando
alguém lembra que el Sur más profundo empieza
del otro lado de la frontera essas
inquietações são assimiladas como parte do inconsciente coletivo de homens e
mulheres que escolheram viver às margens do rio Uruguai.
Porto
Alegre, junho de 2015.
*
Essa reflexão é
fruto da minha experiência no processo de integração cultural Brasil-Uruguai e
também da participação, como ouvinte, nos dois primeiros encontros do seminário
Nós Outros Gaúchos, organizado pela Associação de Psicanalistas de Porto Alegre
– APPOA e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Agradeço a
todos(as) os(as) militantes da integração cultural, assim como às provocações e
contribuições de Deborah Finocchiaro (que na sua performance citou Rosina
Duarte), Donaldo Schüler, Luiz Osvaldo Leite, Tau Golin, Jaime Betts,
Bruno Ferreira, Cesar Augusto B. Guazzelli, Enéas de Souza, Maria Ivone
dos Santos e Mario Corso.
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