Entra sem bater na porta...

“Não sois máquinas, homens é que sois” - Charles Chaplin

Assim como as pessoas, as organizações passam por diferentes estágios até chegarem à sua maturidade. Na primeira infância, elas preocupam-se com os seus interesses individuais, corporativos, no caso das organizações, voltadas para dentro. Na sequência, experimentam a fase das descobertas técnicas, artísticas e científicas, o chamado mundo das habilidades e, somente se conseguirem superar essas duas fases anteriores, acessam o estágio do conhecimento e da criatividade compartilhada.

É comum as pessoas e as organizações permanecerem por muito tempo numa das duas primeiras fases, pois a terceira requer um forte domínio de técnicas de gestão complexas, além de exigir um desejo radical de compartilhamento de conhecimento e de sabedoria, com a sublimação de impulsos infantis (egoísmo e “dono da verdade”) e uma saudável abertura para o novo: o desconhecido.

Na segunda fase, as habilidades técnicas, científicas e/ou artísticas individuais são aprendidas e, quase automaticamente, servirão de base para superá-la. No entanto, a técnica é como um remédio que vicia. Todo sujeito que está recém se iniciando nela, no afã de aplicá-la, acaba sempre substituindo a leitura sensível da realidade pela obediência cega aos procedimentos aprendidos. Assim, a complexidade da realidade passa a não ser compreendida como ciência, no seu contraditório, mas como técnica, induzindo a avaliações precipitadas, limitadas e distorcidas, caindo nas armadilhas do saber formal e burocrático.

Por seu lado, o processo de amadurecimento exige algumas superações e até rupturas, pois ele requer a destruição das amarras forjadas na velha cultura hierárquica e/ou de “castas”, baseada em cargos e funções, originárias dos exércitos, das igrejas e dos governos tiranos, e também a assimilação de uma nova cultura voltada para projetos reais (gestão dos processos e dos resultados), a partir da convivência com as demais pessoas envolvidas.

Numa organização madura e democrática, a valorização do talento individual e coletivo será sempre um fator fundamental da sua política, pois nela as pessoas serão tratadas como sujeitos e não como “instrumentos” de uma ação pretendida. Ou melhor, como uma vida em gestação, essas organizações não estarão preocupadas em apenas apoiar ações de curto prazo. Suas lideranças possuem paciência para escutar o contraditório e muita perseverança para crescer com qualidade e em quantidade. No caso dos governos é mais complicado ainda, pois esse amadurecimento envolverá os servidores públicos de carreira. Sem eles, a execução e os resultados esperados jamais sairão do papel.

Portanto, a gestão voltada para projetos reais e a busca por melhores resultados é muito mais complexa do que sonhar, conseguir financiamentos e/ou assinar contratos. Ela requer que se adote uma visão sistêmica dos processos, e depois, que se identifique um propósito claro (pra quê estamos nos organizando?) e alguns valores centrais para serem pactuados e trabalhados coletivamente. Somente assim as pessoas entrarão sem a necessidade de bater na porta.

Sartori, Forrest Gump e as nossas façanhas



          Forrest Gump – O Contador de Histórias é uma comédia dramática que proporciona algumas reflexões contraditórias sobre a história política dos EUA na segunda metade do século 20. No filme, o diretor Robert Zemeckis revela a existência de um olhar voltado apenas para o presente (imediato), para os chamados prazeres individuais, que deixam a construção do futuro para os “outros", num mundo dominado pelo egoísmo, pela alienação, pelos selfies e pela reprodução dos hábitos de celebridades.
 

          Apesar de ser uma personagem amável, Forrest vivia sem entender o que se passava à sua volta. No entanto, mesmo atrapalhado, ele acabou se tornando uma testemunha da história política norte-americana, pois estava presente "no momento certo" e “na hora certa”, quando fatos importantes aconteciam. Assim, na sua ingênua curiosidade, ele acabou fazendo parte da história, pois sua participação (sic) foi registrada pelas lentes dos fotógrafos e pelos jornalistas de plantão.
 

          Nas poucas vezes em que falava o "soldado Gump" dizia que era fácil servir ao exército, pois bastava "fazer a cama direitinho”, “estar sempre em pé” e “responder todas as perguntas” dizendo: "Sim, senhor!". Na vida real também existem pessoas que repetem tudo o que os apresentadores de rádio e de televisão dizem, sendo que algumas decoram os "chavões" da política e adotam lógicas excludentes (desde que não sejam elas as excluídas). 

         Na maioria das vezes, sem a mínima noção de realidade, essas pessoas vivem apenas para satisfazer os seus prazeres imediatos, pessoais e egoístas.
A mãe de Forrest deu conselhos fundamentais para ele. Ela costumava repetir: "A vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar". E Forrest interpretava (?) que ninguém poderia imaginar um futuro possível e que, por isso mesmo, não adiantava fazer reflexões sobre as possibilidades e nem sobre o destino que estava a sua frente. O seu nome, por exemplo, foi uma homenagem a um antepassado da família que fez parte da história norte-americana: era uma liderança da Ku Klux Klan.
 

         De uma maneira trágica e divertida, o Contador de Histórias nos faz enxergar o mundo com os olhos desarmados e, ao mesmo tempo, com uma enorme vontade de desvendar os obstáculos e a complexidade da vida contemporânea.  Uma vida caracterizada pela abundância de informações (televisão e internet), e também pelo surgimento de redes caórdicas de relacionamentos, pelo crescimento de valores egoístas e individuais, e pela triste proliferação de grupos de pessoas céticas, dispersas e solitárias.
 

           Depois de assistir ao filme se consegue pensar melhor sobre as nossas escolhas, sobre a relação que temos com a família, com os amigos, com a história e com a política. No entanto, muitas pessoas preferem seguir a vida sem se comprometer com nada, e por isso mesmo não medem as consequências dos seus atos. Outras, idealistas, apenas fazem os seus protestos e morrem.
 

           Numa sociedade dominada pelas mídias e pelas novas tecnologias estamos perplexos assistindo muitas verdades serem substituídas pelas aparências e pelas intenções do marketing, como se tudo fosse uma propaganda ou um produto a ser consumido. Nessa confusão midiática ficou muito difícil identificar a verdadeira intenção das pessoas e os valores que orientam as relações presenciais e/ou virtuais. Algumas pessoas até dizem querer mudar a vida, mas no fundo querem apenas manter os seus privilégios (status e cargos). Outras querem acabar com as diferenças na porrada, impondo a sua verdade e não aceitando o diálogo franco e maduro.
 

             Elas estão pouco se importando com o método utilizado e distorcem o próprio sentido de cidadania e de amizade, pois agem como se não tivessem “compromissos” e “responsabilidades”. A palavra, o gesto e a intenção acabam se tornando “coisas” que perdem o seu sentido prático e sensível. Querem relações frias e impessoais, ou como se tudo fosse um verdadeiro “jogo de azar”. Mas, ao olharmos bem de perto, caso a caso, ouvindo e sentindo cada gesto, é que conseguimos perceber as diferenças, os resultados e também (é claro!) as confusões.
     

            E o que o Sartori tem a ver com tudo isso? É verdade que ele adora falar dos conselhos que recebeu da sua mãe, que nunca sabe o que vai acontecer no futuro e que possui muitos seguidores... O que muita gente não percebe é que ele quer transformar as pessoas em verdadeiros "Forrest Gumps". Ou seja, ele está tentando entrar para a história como um governador “Contador de histórias” e que segue ocultando as forças conservadoras e reacionárias que o apoiam desde a campanha política.
 

              Quem acha que o governador é um Forrest Gump está muito enganado. Na verdade, ele faz parte de uma campanha de marketing muito bem pensada, que quer privatizar o Estado e vender o máximo do patrimônio público. É bom lembrar que Sartori era líder do Governo Britto na Assembleia Legislativa, e foi responsável pela péssima renegociação da dívida do estado com a União, que hoje ele tanto reclama. À época ele também apoiou a privatizações de empresas públicas, os planos de demissões voluntárias e também aprovou aquele famigerado modelo de pedágios.  Agora, como governador, ele já tomou várias medidas “duras” que impactam na vida dos gaúchos e das gaúchas. Vejam algumas delas:

- Acabou com a Secretaria de Políticas para as Mulheres e criou uma secretaria especial para a sua esposa;
 

- Usou o helicóptero do Estado para compromissos particulares;
 

- Aprovou um reajuste de 45,9% para o seu salário (depois voltou atrás, em função da pressão popular), de 64% para seus secretários de governo e de 26,3% para os deputados estaduais;
 

- Atrasou e parcelou o salário dos servidores públicos, e responde na justiça por esse ato;
 

- Diminuiu o policiamento nas ruas em função do corte de horas extras dos policiais;
 

- Deixou de repassar recursos para hospitais e, com isso, os hospitais reduziram leitos, demitiram funcionários e baixaram a qualidade dos atendimentos;
 

- Suspendeu o pagamento dos fornecedores e dos prestadores de serviços, gerando desemprego em empresas terceirizadas;
 

- Encaminhou projeto de extinção da Fundação Zoobotânica e assim pretende desmantelar uma instituição séria, que contribui com conhecimentos essenciais para a proteção ambiental do estado;
 

- Assinou um decreto de regulamentação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Bioma Pampa com a nítida intenção de facilitar o agronegócio, aumentar as lavouras e acabar com os campos nativos remanescentes. Esse decreto está sendo contestado pelo Ministério Público;
 

- Não conversa com a imprensa após o anúncio das suas medidas amargas;
 

- Indicou pessoas sem a mínima experiência para áreas estratégicas do Estado, como a Secretaria de Administração, de Turismo etc;
 

- Empregou parentes de secretários e de deputados, e indicou secretários de estado para o Conselho de Administração do Banrisul, das empresas estatais, para aumentar ainda mais a renda dos seus amigos;
 

- Quer aumentar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e de Serviços (ICMS) e, com isso, vai contribuir para aumentar o preço dos alimentos, dos combustíveis, da energia elétrica, da internet, e dos serviços em geral;
 

- Os deputados da base aliada aprovaram o projeto ironicamente chamado de “Lei Escola Melhor: Sociedade Melhor”, que abre a possibilidade de privatização do ensino público e tira a responsabilidade do Estado com a educação;
 

- Os seus deputados também aprovaram a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2016 e tudo indica que haverá um arrocho salarial, e todas as consequências que isso trás (greves e mais greves).

O governador disse que essas medidas representam apenas uma "sementinha" dentro das atitudes propostas para melhorar as condições financeiras do Estado, mas vemos que a população do Rio Grande do Sul já está começando a viver um novo pesadelo. A segurança pública está ameaçada, com um considerável aumento da criminalidade e dos assaltos, as escolas vivem momentos de incertezas e de manifestações diárias, milhares de pessoas estão ficando sem atendimento de saúde e alguns municípios suspenderam ou reduziram os atendimentos pelo SUS. As ameaças de atraso nos pagamentos e o parcelamento dos salários trouxe ainda mais insegurança para os servidores, que não conseguem planejar a vida de suas famílias.
 

          Seria cômico se não fosse trágico...  Vê-se que o Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade (PGQP), aplicado pela consultoria do empresário Jorge Gerdau, é um plano que trata as pessoas apenas como números e o patrimônio público conquistado pelos nossos pais e avós como bens totalmente descartáveis. No entanto, se os riograndeses recomeçarem a escrever a sua história a partir das organizações e das lutas sociais, e não ficarem apenas falando entre os seus e/ou criticando a figura caricatural do governador, essa camuflada estratégia política e midiática poderá ser desmascarada.
 

             Ainda bem que, contraditoriamente, Sartori conseguiu unificar diversos setores contra o seu governo, e uma grande mobilização promete continuar até não se sabe quando... Tudo vai depender do grau de consciência e de organização que os gaúchos e suas lideranças conseguirem alcançar.
 

         A vida ensina aos que lutam e sabemos que num futuro próximo, esses grupos econômicos que apóiam Sartori, assim como os seus silenciosos seguidores, terão que se explicar pelo novo sucateamento do Rio Grande. Pior é que não se trata de um filme e muito menos de uma peça de ficção, e que, portanto, todos nós seremos responsabilizados pelas nossas escolhas, silêncios e atitudes. É que as nossas vidas estão em jogo, assim como as vidas de nossos amigos, filhos, netos e vizinhos. É sempre bom lembrar que um povo que não tem virtude (e que não se organiza) acaba por ser escravo de políticos inescrupulosos.

Ricardo Almeida é consultor em gestão de projetos com uso de tecnologia da informação e comunicação.