As regras do jogo.

                                                                                                           Cómo hacerte saber que siempre hay tiempo?
                                                                                                           Que uno tiene que buscarlo y dárselo...
                                                                                                           Que nadie establece normas, salvo la vida...
                                                                                                           Que la vida sin ciertas normas pierde formas...
                                                                                                           Desde los afectos, de Mario Benedetti

    Quando Felipe Melo pisou na perna do adversário sem motivo algum e foi expulso nas quartas de final do Mundial de 2010 (reveja a cena aqui), a seleção da Holanda ganhou o jogo e eu xinguei a tela da TV até aquele jogo terminar. Dias depois, quando Luis Suarez, da seleção uruguaia, colocou a mão na bola dentro da área e foi expulso aos 46 minutos do segundo tempo (reveja a cena aqui), eu vibrei de alegria, pois percebi que ele agia consciente das regras do jogo e estava utilizando o último recurso que restava.

    Eu sei, e todos os brasileiros sabem que o jogo de futebol tem as suas regras... O problema é que nem todos sabem que numa sociedade organizada também existem pactos escritos para garantir os direitos e os deveres de cada pessoa, das organizações, dos políticos, dos juízes etc. Portanto, entendo que, nós brasileiros, precisamos repensar algumas questões básicas para conviver em sociedade: será que existem regras claras em todos os jogos que estamos jogando? Devemos defendê-las ou devemos lutar para modificá-las? Devemos agir apenas orientados pela fé e pela emoção ou existem outras formas racionais de interagir numa situação adversa?

    Tenho certeza de que o jogador uruguaio estava muito emocionado ao botar a mão na bola. Ainda mais que o adversário acabou errando o pênalti e o Uruguai ganhou aquela partida também nos pênaltis. Sei disso porque eu nasci lá na fronteira (com o Uruguai) e convivi, joguei futebol, basquete e vôlei com eles por muito tempo. Portanto, reconheço que naquele gesto havia muita racionalidade, pois além da paixão por LA CELESTE, a educação que eles ainda recebem é bem menos "técnica" do que a nossa.

    Lá, por exemplo, as universidades foram criadas muitas décadas antes que as nossas. Na Constituição de 1917 o Estado foi separado da influência da Igreja e o presidente colorado José Batlle y Ordóñez incentivou um verdadeiro laicismo radical no país (lembrem que naquela época a Igreja Católica era a única que tentava influenciar e disputar a esfera pública). Portanto, há muito tempo não se vê símbolos cristãos nas praças, nas salas de aula, nos tribunais e nem nos hospitais da rede pública. No juramento oficial de posse os presidentes não dizem “eu juro por Deus” pois todos se comprometem a seguir e defender unicamente os parâmetros da constituição uruguaia e a proteger os interesses da nação.

     Diferente do Brasil, alguns partidos uruguaios são seculares e o Frente Amplio, que reúne a esquerda uruguaia foi criada em 1971. Esta maturidade política também dificulta as manobras espúrias e o surgimento de uma bancada que defenda as "leis" divinas.

     Quais foram as consequências disso? Os uruguaios aboliram a escravidão quarenta e seis anos antes que o Brasil. As mulheres uruguaias conquistaram o direito ao voto em 1917 e as brasileiras somente em 1932. O país foi o pioneiro ao permitir o divórcio por iniciativa da mulher em 1913 enquanto que a lei brasileira foi aprovada apenas no final dos anos 70. Enfim, recentemente eles conseguiram avançar ainda mais nos seus direitos civis, com a legalização da relação entre pessoas do mesmo sexo, com a não punição à prática do aborto até a 12ª semana de gestação e se tornaram o primeiro país no mundo a comercializar a marijuana pelo próprio Estado. Nós, brasileiros, em pleno século 21, ainda estamos enfrentando o conservadorismo católico e evangélico que invadiu o parlamento, e participamos de algumas passeatas para tentar mudar as velhas regras desse jogo.

     Mas, será somente por isso que não avançamos tanto quanto los hermanos uruguayos?

    Eu me inclino a pensar que somos pouco objetivos (pragmáticos) nesta luta cultural e política. Os uruguaios são educados desde cedo a considerar mais o coletivo ao invés de priorizar soluções (sic) individuais. Uma regra deles, que seria muito polêmica no Brasil, é o uso obrigatório de aventais brancos nas escolas. Segundo ela, isso evita que uma criança se veja como uma “princesinha” ou um “reizinho” perante os demais. Desde cedo eles aprendem que as salas de aula e os colégios não são lugares apropriados para um desfile roupas e de produtos. Gostemos ou não, me parece que eles incentivam (ensinam) as crianças a prestar atenção no conteúdo e não apenas na aparência. Por outro lado, enquanto no Brasil as crianças e adultos transformam a internet num verdadeiro cassino, lá o Plano Ceibal, além de entregar um computador para cada aluno, também se preocupa em selecionar e indicar conteúdos para as crianças acessarem, junto com suas famílias e os moradores do bairro em que vivem.

    Também entendo que nós estamos sucumbindo por excesso de palavras (sem ações concretas) e de uma cultura formada para assistir ao espetáculo. Por isso, eu considero de fundamental importância analisar e refletir sobre o papel da educação formal e informal (aí eu incluo a relação familiar, a literatura produzida, a política e as novelas de TV), pois através delas podemos identificar as formas de interpretação e representação da nossa realidade. Precisamos reconhecer e inserir os elementos subjetivos e simbólicos na nossa análise, para perceber como os diferentes atores da nossa sociedade representam a sua visão de mundo. O ideal seria que todos os brasileiros abandonassem aquela velha mania de ser “técnico” da partida e começassem a jogar o jogo  além de considerar as suas regras, é claro! Pois, de nada vale contrapor a todo custo a opinião do “outro”, apenas para provocá-lo. A nossa realidade já é diversificada, cheia de contradições e de influências étnico-culturais para ser reduzida a uma homogeneidade política e cultural.  No fundo, precisamos reconhecer o descompasso que ainda existe entre a mentalidade colonial europeia que nos foi imposta e a mentalidade mítica/mágica das culturas indígenas, africanas e orientais que sempre estiveram por aqui, pois essa conjunção entre a razão e os mitos será o fio da meada para a compreensão da nossa nova sensibilidade.

    Não podemos seguir formando gerações e gerações de pessoas que só pensam em soluções egoístas, e criando (?) os nossos filhos e netos em quartos fechados. Não podemos seguir assistindo o incentivo ao consumo como uma regra nos programas da TV, em muitos templos religiosos e até em planos governamentais. Ao mesmo tempo, precisamos combater a apologia ao insignificante que se tornou prática comum em diversos programas de rádio, de televisão e também na internet. Pois, com essa guerra de des-in-formação os brasileiros estão ficando cada vez mais confusos e desorientados. Os jogadores de futebol, a seleção e os seus times são apenas expoentes dessa educação desorganizada e individualista que estamos reproduzindo por gerações após gerações.

    Definitivamente precisamos compreender que os desmandos da política não desaparecem como num passe de mágica, que o Paraíso e a Terra Prometida são criações de um pensamento idealista, que servem apenas para caminhar. Que nós teremos aquilo que encontrarmos dentro de cada um de nós. Por isso, sem vacilar, eu aconselho um rápido passeio no paizito hermano para desfrutar um pouco das suas praias, mas também para mergulhar de cabeça na sua cultura, na sua política e na sua história. Afinal, todos nós sabemos que este nosso jogo não tem fim... Ou então, é ficar na arquibancada torcendo para que algum mecenas ou juiz faça a sua leitura das regras do jogo.

A educação precisa de perguntas

Dedico às minhas avós, aos meus pais e aos meus queridos(as) professores(as)


As minhas duas avós não tiveram a oportunidade de estudar numa escola regular, mas possuíam aquilo que costumamos chamar de sabedoria. Ambas criaram os seus filhos sozinhas e não lembro de elas reclamarem da vida. Quieto no meu canto, aprendi com elas que educação a gente aprende na família, na escola e principalmente com as nossas relações sociais.

Pena que esse pensamento tenha se perdido no passado. A partir dos anos 1960-70 a televisão brasileira começou a tomar conta de nossas casas, ocupando um lugar de destaque na sala, depois  foi para todos os quartos e acabou tomando conta de muitos corações e mentes desavisados. Aos poucos, as famílias foram sendo seduzidas pelo conforto que a programação lhes dava, e deixaram de sair, visitar os amigos e "perder um pouco de tempo" fazendo outras coisas. Ao mesmo tempo, muitas pessoas começaram a jogar toda a responsabilidade da educação apenas para os professores(as).

Por isso, hoje lembro com muito carinho da educação que recebi das minhas queridas avós,  pais e professores(as).

Contrária a esse raciocínio, a RBS TV, subsidiária da Rede Globo nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ainda está promovendo uma "campanha" chamada A Educação Precisa de Respostas, como se ela tivesse solução para tudo. Ao mesmo tempo, ela mantém em sua grade de programação vários seriados norte-americanos que banalizam a violência,  incentivam a dirigir de forma veloz e furiosa, promovem o consumismo entre as crianças e a juventude. Resumindo: nos seus diminutos jornais fazem um discurso moralista e no minuto seguinte apelam para aquilo que os mantém em bons níveis de audiência, pois isso também dá lucro para eles e para os seus "patrocinadores".

Por isso, eu entendo que cabe perguntar: Afinal, quem é responsável pela educação das nossas crianças, amigos e parentes? Qual é o papel da escola? E da família? E da televisão?

Outro dia eu assistia o programa Conversas Cruzadas, da TV COM, e os debatedores defendiam a campanha Rio Grande do SIM, relacionando as vantagens de morar no Rio Grande do Sul e faziam algumas importantes comparações com os outros estados brasileiros. Enfim, todos defendiam que os gaúchos, além de críticas, também deveriam aprender a valorizar o que já haviam conquistado no seu rico processo histórico. Eu estava gostando, pois morei onze anos fora daqui e percebia claramente o que eles estavam dizendo. Por seu lado, o "moderador-agora candidato" Lasier Martins, surpreso com a fala dos seus convidados parecia não acreditar no que ouvia. Ainda mais que todos eram representantes da iniciativa privada.

Não é que de repente surge uma revelação pedagógica: numa daquelas vinhetas em que a população participa, um simples cidadão diz o seguinte: “Eu não sei. Mas hoje eu vi o Lasier dizer que estava tudo ruim... Então deve estar tudo ruim mesmo!”. Ele acabava de revelar quem reproduzia diariamente uma "educação" pessimista e fatalista de nós mesmos... Ao "apresentador- agora candidato" só restou repetir aquele famoso refrão: Os nossos (sic) comerciais, por favor!!!

Falo isso não apenas pelo fato de ele ser candidato declarado (com direito a campanha antecipada e tudo em horário nobre), mas para lembrarmos que essa “rede” possui interesses comerciais estratégicos que dependem diretamente da política municipal, estadual e nacional. Por isso, costuma lançar seus candidatos. Há pouco tempo ela já tentou participar da privatização da telefonia no estado e teve que se retirar após perder uma acirrada disputa política e jurídica. Se lembrarmos que eles possuem volumosos interesses na área da internet, da construção civil e que estão de olho nos negócios que a Copa do Mundo de 2014 pode trazer, a reflexão fica muito mais complexa.

Ou seja, do ponto de vista "comercial" isso tudo pode ser visto como legítimo. Mas estamos falando de jornalismo, de política e da educação dos nossos amigos, filhos e parentes. É lamentável que muitos gaúchos não se apercebam que essa "educação" está invadindo as nossas casas e também o quarto dos nossos filhos! Infelizmente, muitas pessoas ainda não aprenderam (sic) que a televisão é uma concessão pública (assim como o transporte público), de direito público, e precisa de controle civil externo e de regulamentação.

Sem desmerecer o importante papel dos professores, eu entendo que a educação está precisando de mais boas perguntas do que de respostas direcionadas. Já diziam as minhas queridas avós...

O Tempo e os Novos Ventos

       O argentino José Hernandez morou nas cidades de Santana do Livramento e Buenos Aires e escreveu o épico Martín Fierro (1872) que retrata a peregrinação e as reflexões de um gaucho abandonado à própria sorte, entre guerras e conflitos. Simões Lopes Neto e Érico Veríssimo viveram nas cidades de Pelotas e Porto Alegre, respectivamente, e escreveram os Contos Gauchescos (1912) e O Continente (1949), obras que também fazem uma abordagem sobre as formação das primeiras vilas e cidades no pampa. Pela sua importância histórica e literária as obras desses homens urbanos e letrados são utilizadas por professores, artistas e intelectuais para representar a cultura gaúcha/gaucha.

      Fica uma pergunta: Por que será que a obra de Érico Veríssimo é sempre representada apenas pela primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento? No livro O Continente (escrito em 1949), Veríssimo aborda as primeiras migrações no território, chamado na época de "Continente de São Pedro" (1745). Mas a saga das famílias Terra e Cambará continua nos outros dois volumes da trilogia: O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961). Os personagens de O Tempo e o Vento são protagonistas das origens e da urbanização do Rio Grande, influenciaram a formação de uma visão republicana no Brasil e vão até o Estado Novo, de Getúlio Vargas (1945), quando a capital ainda era a cidade do Rio de janeiro. Portanto, nos três volumes, Veríssimo aborda algumas das muitas contribuições culturais rurais e urbanas do povo gaúcho na demarcação do território nacional e também na constituição da República Federativa do Brasil.


      Responder essa pergunta é uma tarefa difícil, pois requer a identificação dos mitos na formação da identidade cultural gaúcha. Além disso, exige uma separação do enfoque simbólico (mitos) das análises históricas (fatos), e evitar todo tipo de generalização. O reconhecimento da diversidade étnico-cultural que atualmente povoa a cidade e o campo do estado do Rio Grande do Sul e toda a região do Rio da Prata é uma questão complexa. A cultura “regional-nacionalista” que exercia um papel político importante para demarcar o território com os “castelhanos” perdeu parte de sua função original pois a região está muito mais urbanizada e globalizada do que anos atrás. As novas gerações dialogam naturalmente com os uruguaios, argentinos e com o mundo inteiro. Assim, alguns estereótipos criados por necessidades políticas da época, aos poucos, vão sendo substituídos por outras representações da nova realidade. 

             Um exemplo claro dessa diversidade cultural fica mais evidente na faixa de fronteira Brasil-Uruguai, uma região reconhecida pelas suas con-tradições e que conta com mais de um milhão de habitantes, sendo que quase noventa por cento das pessoas vivem nas cidades (dados IBGE/2010 e INE/2011). A grande maioria delas possui uma bicicleta, uma motocicleta ou um automóvel. Algumas dormem em colchões King Box e pilotam uma camionete Land Rover 4X4, equipada com computadores, para administrar os homens e as máquinas que trabalham no campo. Quase todos usam um celular e possuem um ou mais aparelhos de TV com antena parabólica em suas casas. Seus filhos navegam diariamente na internet, e quase todas as escolas estão equipadas com modernos computadores. 

      Mas, até os anos 70, essa fronteira era uma região com grandes frigoríficos ingleses e norte-americanos, que serviam para exportação de carnes e seus derivados. Durante os anos 60, 70 e início dos 80, a região foi considerada pelos governos militares como área de segurança nacional e, portanto era tratada como uma “área de conflito”. Por causa disso houve poucos investimentos nessas cidades. A partir dos anos 80, esse esquecimento foi sendo substituído por políticas nítidas da era (mais) globalizada e os empresários estrangeiros e  uruguaios abriram lojas que vendem perfumes franceses, whisky e vinhos importados, sem pagar impostos nacionais. Esse processo também mudou a paisagem urbana, pois foi acompanhada pela nítida destruição da memória arquitetônica que resistia naquelas cidades. O homem do campo segue plantando e criando gado em menor quantidade, e buscou outras alternativas, como a plantação de uvas e oliveiras. 

Neste contexto, o culto à tradição permanece misturado com os "castelhanos" mas também foram surgindo festivais binacionais de música popular e erudita, de cinema, de teatro, de camdombe, de jazz, as feiras binacionais do livro etc. Todos esses ventos foram se misturando no tempo e revelando a multiculturalidade que é uma característica singular das sociedades democráticas e também daquela região.
       
       Para refletir sobre a diversidade cultural do Rio Grande de hoje eu sugiro um rápido exercício de ficção e de raciocínio: O que diria el gaucho-argentino José Hernandes sobre os parques eólicos que mudaram a paisagem do Pampa? Como Simões Lopes Neto descreveria os trabalhadores de Pelotas e do Porto de Rio Grande? O ítalo-gaucho Garibaldi utilizaria algum dos navios fabricados nos estaleiros do Pólo Naval? O que escreveria Erico Verissimo sobre a globalização da nossa economia? Chimangos e maragatos comprariam nos freeshops de Rivera?  

      Cada discurso tem que ser confrontado com a prática de quem o fez, para revelar a sua veracidade e a sua consistência. Todas as lembranças históricas são importantes, pois elas fazem parte da simbologia e do inconsciente coletivo de um povo, mas os pensamentos mecanicistas e excludentes, que insistem em se manifestar precisam ser superados, pois eles não reconhecem a complexidade da diversidade cultural existente e confundem o debate sobre a simbologia e os valores com a interpretação dos fatos históricos

       Apenas uma adesão ao campo da práxis (prática histórica e sensível) poderá fazer esse raciocínio avançar. Os clichês, os jargões e as disputas entre a verdade e a não verdade dos fatos acabam sempre reproduzindo a velha ideologia competitiva e “caudilhesca”. Revirar e reconstruir o(s) tempo(s) já vivido(s) pelos nossos antepassados, até chegar ao tempo presente, é um imenso desafio, pois exige conceitos que enxerguem a cultura como um processo vivo, não fragmentado e nem departamentalizado em prazeres meramente acadêmicos e estéticos (preconceituosos). Nesse processo vivo, também é preciso reconhecer a celebrar as liberdades e as façanhas conquistadas pelos antepassados, assim com toda a diversidade política, étnica, econômica, simbólica, tecnológica, artística e cultural que é uma marca deste território estratégico de intensas con-tradições e disputas nacionais/internacionais.  

        Não reconhecer toda a diversidade cultural do Rio Grande é viver preso no discurso acadêmico ou no passado. Somente ao reconhecer suas virtudes, o povo deixará de ser escravo de um tempo que já não existe mais.

P.S. Qual seria o melhor título para esta reflexão? 1) O Tempo e o vento parado no tempo; 2) O Tempo e os diferentes ventos; 3) Todos os ventos num tempo só ou 4) O tempo e os novos ventos.

As tecnologias

Dizem que a Bossa Nova foi gravada lá fora por causa da qualidade do som. Naquela época os estúdios norte-americanos e europeus eram bem melhores do que os nossos. Eu lembro que era muito difícil de se entender a fala dos atores no cinema brasileiro. Problema das salas de cinema, mas também da qualidade da gravação. Foi nos anos 80 que tudo começou a melhorar, até surgir o dolby-stereo, o efeito surround e depois os home theaters.

Esse avanço tecnológico foi fundamental para sensibilizar os nossos sentidos e aumentar o consumo de música e vídeos no país e no mundo. Hoje a indústria do entretenimento é uma das maiores do mundo e parece que perde em faturamento apenas para a do petróleo.

Mas o som estereofônico surgiu na minha vida lá pela metade dos anos 70. Até então eu escutava rock, pop e MPB numa velha “eletrola”, depois num toca-discos portátil e também num gravador Philips... Daqueles com fitas cassetes TDK, BASF, Sony e Philips que enrolavam na melhor parte da música.

Anos mais tarde ganhei um “prato” em 33 rotações... Era um toca-discos que eu pluguei num amplificador da guitarra do meu irmão. O som ainda saía em mono, mas era muito bom... Claro que não chegava aos pés de aparelhos estereofônicos que se ouvia em algumas casas da cidade. Mas era muito bom!

Certa vez um grande amigo e sócio do meu pai deixou um amplificador lá em casa e eu resolvi plugar os dois naquele “prato” para escutar pela primeira vez um som estereofônico no meu quarto. Foi uma experiência que me marca até hoje... Ainda mais que os primeiros LPs que rolaram naquele quarto foi o The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd e o A Horse With No Name, do América. Não preciso lhes dizer das coisas que aprendi nos discos, mas dalí pra frente as performances com guitarras, baterias, saxes e corais começaram a adquirir uma nova dimensão para mim.

Agora, vai fazer trinta anos que eu trabalho com sistemas e tecnologias da informação. Navego na internet e amplifico o som e a imagem que recebo através das redes sociais. Assim, posso ver e a ouvir aquelas apresentações que a gente só imaginava e que ficaram empoeiradas em algum lugar da memória. Como no filme Barbarella ou 2001 - Uma Odisseia no Espaço, fico quase que diariamente conectado na rede mundial de computadores compartilhando sentimentos e visões de mundo com velhos e novos amigos(as)... Assim também vamos modificando a nossa forma de perceber o mundo que se abriu em rede para o infinito. Como deuses, nos sentimos em todos os lugares ao mesmo tempo, agora...

Tudo isso me faz crer que um mundo hipnotizado pelas novidades tecnológicas e pelo consumo tende a se tornar obsoleto. Menos nas memórias, nos conhecimentos e nas sensibilidades que conseguimos adquirir.

Viver é melhor que sonhar!

Eu passarinho...



Confesso! Quando menino eu matei mais de um milhão de passarinhos. O meu pai pagava para a gente matar caturrita e proteger a horta da granja, mas a gente aproveitava e fazia a pontaria em todos eles: Beija-flor, periquito, sabiá, bem-te-vi e “corroera”. Era uma verdadeira chacina, que hoje vejo como muito horror! Claro, que se eu pudesse escolher não teria feito nada daquilo... Mas, o que faz um menino que ganha uma espingarda de presente? Agora já é tarde! Só resta essa minha cruel confissão.

Naquela época, na fronteira que fica ao sul do Brasil, o lado sombrio da vida era mais ou menos assim: além do frio de rachar, tinha um pouco de melancolia, algumas brigas banais, homens portando arma na cintura, etc. e tal. Enfim, tinha de tudo! A gurizada podia acompanhar os pais nas pescarias, nas caçadas, nas tosquias, na carneação de ovelhas... Também tinha um lado bucólico, pois a gente acabava conhecendo os matos silvestres, os riachinhos e a solidão dos campos.

Pensando bem, aqueles foram os meus anos de reconhecimento das contradições da vida. Mas, somente bem mais tarde, depois dos 16 e dos 19 anos, foi que eu comecei a refletir e a lapidar a minha sensibilidade com a natureza e com a vida em sociedade.

Nos anos 60 e 70, era “natural” essa tradição cultural passar de pai para filho sem quase a gente se aperceber. Pois, além de brincar na rua, as crianças ganhavam armas de brinquedo, podiam matar passarinhos, botar apelidos nos amigos(as), fazer folia nas salas de aula... Algumas dessas coisas que ainda insistem em permanecer entre nós... Após os 15 e 16 anos, além do jogo de cartas, estávamos “autorizados” a beber até cair... Muitos costumavam cheirar lança-perfume no Carnaval e a experimentar otras cositas más.

           A minha geração relutou e rompeu com boa parte dessa tradição cultural conservadora. Mas muitos não conseguiram sair desse círculo vicioso e permaneceram reproduzindo certas regras, etiquetas e protocolos herdados inconscientemente de seus pais e avós. Outros morreram pelo caminho... 

        E eu? Eu passarinho.

Rebeldes ou reféns?

"Que ingenuidade - pedir a quem tem o Poder, para reformar o Poder..."

Giordano Bruno (ano de 1600)


Sempre que surge uma manifestação rebelde e criativa, a velha sociedade, composta por pessoas conservadoras, reage com a máxima "atenção" possível, pois percebe que está diante de uma ameaça à manutenção da "sua ordem” estabelecida, dos seus hábitos e também dos seus privilégios. Às vezes, para se proteger, ela adapta um pouco do seu discurso para não se parecer tão conservadora assim.

Por seu lado, nas novas organizações que surgem é comum encontrar pessoas que se contentam em ironizar, debochar, protestar nos bares, nas esquinas e/ou nas redes sociais. Muitas delas se dizem revolucionárias, mas na verdade se tornaram reféns da sociedade conservadora e não se apercebem disso. Por quê? Porque não possuem um projeto político de sociedade e nem querem participar do debate mais profundo sobre aqueles projetos que estão em disputa na vida real. Elas se contentam com o pequeno espaço conquistado (sic) para o seu frágil discurso. Ou seja, fazem o seu protesto e depois se dispersam pelos diferentes cantos da cidade e do país, sem construir novas estruturas participativas de Poder (micro ou macro). Na maioria dos casos, elas preferem endeusar-demonizar políticos e personalidades em evidência, pois acreditam que somente a eles cabe organizar as relações de Poder na sociedade.

Infelizmente, muitos de nós fomos educados (?) para não gostar da vida pública e acabamos reforçando a crença de que uma nova sociedade poderá surgir espontaneamente ou será obra de um "assalto" ao Poder. Essas pessoas não percebem que a construção de uma nova sociedade começa na velha sociedade (citando Paulo Freire). Ou seja, que a sua prática e o seu método de intervenção se reduz a uma prática comum, imediatista e vulgar. Assim, ela nunca é entendida como uma categoria da atividade humana mais sensível, que considere o contexto histórico, a cultura das pessoas e das organizações e os relacionamentos necessários para superar os grandes obstáculos.

Precisamos entender que as universidades, os governos, os partidos, as organizações da sociedade civil, a mídia e todo o aparato estatal existente, são fruto de práticas e de concepções (teorias) que dominaram e dominam a nossa vida cultural e política há alguns anos. E que, se ainda existem pessoas que curtem e compartilham as apologias ao ódio, à violência, ao consumismo e ao autoritarismo, é porque ainda co-existe entre nós um imaginário popular que ainda não reconheceu a importância desta recente e frágil experiência democrática no Brasil.

Ficar repetindo que ainda não temos um bairro-cidade-estado-país-planeta maduro, com organizações que sejam capazes de acabar com todas as injustiças e desigualdades etc. e tal é um primeiro passo para a mudança, mas não pode ser o único passo. Este "mal estar" e toda a indignação existente precisam ser canalizados para a construção de novas estruturas organizativas nas cidades, no estado e no país, que substituam as velhas estruturas conservadoras.

Quem quiser entender melhor, que pesquise um pouco mais sobre a degeneração dos propósitos humanistas ocorridos na história do Cristianismo, da Revolução Francesa, do Socialismo Real e de outras experiências reais. Quem quiser realmente mudar a vida, que comece por questionar as suas próprias práticas e concepções. Que compare a sua prática com os seus sonhos, para ver se ela está colaborando para torná-los viáveis.

Enfim, para não nos tornarmos reféns da sociedade conservadora, e para construirmos relações culturais-éticas-políticas mais maduras (e permanentes), precisamos permitir e alimentar uma mudança interior/exterior em cada um(a) de nós, a partir de uma prática subsidiada por novos conhecimentos, que melhorem radicalmente as nossas relações familiares, escolares, comunitárias e políticas. Traduzindo: as velhas estruturas organizacionais da sociedade somente se modificarão se formos criativos, e mudarmos substancialmente a base dessa mesma sociedade.

SOBRE A REFORMA POLÍTICA

O povo brasileiro, a partir das recentes manifestações e do questionamento das atuais estruturas políticas, está conquistando uma oportunidade ímpar de realizar uma reforma política no país. Aqui não se trata reformar apenas os partidos (uma parte da sociedade está representada em cada um deles), mas de todo o tipo de participação que a nossa criatividade e capacidade organizativa conseguiu acumular até agora.

É claro que o Congresso atual, com sua maioria conservadora está propondo uma saída também conservadora para a "crise" de representatividade. Não poderia ser diferente! Por isso, a melhor saída será a constituição de uma "Assembleia Exclusiva de representantes do povo", eleita apenas para esse fim. Mas como obter esta nova conquista, se as mobilizações estão diminuindo? Só nos resta preparar e organizar uma segunda onda, mas com um Propósito bem claro e com Princípios que sejam democráticos e plurais. Se não, será muito esforço para poucas conquistas.

(Inspirado num texto que li na década de 1970, publicado no Jornal Opinião)

Lembranças dos cinemas na fronteira

Eu tinha um jipe de pedal, daqueles com uma estrela no capô, e que foi presente de Natal. E que presente! Como a gente morava na Salgado Filho e tinha uma enorme ladeira, era comum a gurizada se jogar de carrinho de "rolimã" ou com rodas de madeira. Mas o jipe andava a toda velocidade ladeira à baixo, e muitas vezes, é claro, eu capotei. 

Ainda pequeno, tive experiências inesquecíveis, como o futebol no pátio da casa de minha avó ou nos Bombeiros, a Páscoa na granja que meu pai arrendava para plantar e produzir, as revistas em quadrinhos do Gato Felix e dos Sobrinhos do Capitão, e daquela gurizada que vivia pelos boeiros e nos campinhos de futebol perto do Irajá, do Fluminense e do Estadual. Ainda não havia essa mania de proibir as crianças de correrem algum tipo de risco. Mas a lembrança que mais me emociona são as imagens que guardei das matinés do Seu Hermes. A gente ia pelos trilhos, passava pelo riacho, subia um descampado e chegava no cineminha mais ou menos improvisado. Tinha gente que sentava em bancos postados na diagonal da tela. Os filmes, a maioria em preto e branco, eram vistos como dava, mas sempre nos entusiasmavam.

Como eu era pequeno, os meus irmãos mais velhos me levavam para vibrar com o Randolph Scoth, o Johnny Weismuller, o Chaplin, o Buster Keaton, o Stan Lauren e o Oliver Hardy. Assim, sem saber, víamos filmes raros, que já não passavam nos outros cinemas daquelas duas cidades.

Acho que na minha infância, devo ter visto milhares de filmes, sendo que alguns deles, repetidas vezes. O cinema era a grande novidade da época, já que ainda não havia televisão (muito menos celular, smartphone e internet) naquela fronteira, que teve oito salas de cinema nos anos 70.

Depois daqueles anos eu assisti os principais clássicos do suspense, da comédia e muitos épicos, do faroestes aos romances. Lembro sempre do Spartacus, que eu nem sabia que era do Stanley Kubrick, e também do Laurence da Arábia, que eu também não sabia que era do David Lean. Às vezes saíamos do Internacional no intervalo do segundo para o terceiro filme da matiné e corríamos para entrar sem pagar no Grand Rex. Assim, dava tempo de pegar o último filme que passava. Entrávamos na parte de cima, no mezanino, quando recém ficara escuro e o único lanterninha ainda estava distraído acomodando as pessoas.

Como havia censura e repressão no Brasil, a gente assistia quase todos os filmes proibidos do lado de lá. Vimos Laranja Mecânica, Sacco & Vanzetti, Zabrieskie Point, A Classe Operária vai ao Paraíso, Mimi, o Metalúrgico... e tantos outros.

Ao lembrar, só tenho que agradecer ao Seu Hermes e aos cinemas de Livramento e Rivera por terem me proporcionado tanta alegria e tanto sentimento de liberdade.

Veja a seguir o vídeo que foi produzido pela Graffitae Artes, para a inauguração do projeto Estação Cultura, das Secretarias de Cultura e de Turismo de Livramento. O roteiro é meu e parte da edição teve a minha colaboração.

A liberdade e o futuro da Internet

Retirei este pequeno texto da apresentação do livro de Julian Assange, Cypherpunks - Liberdade e o futuro da Internet:

"Todos sabem que os recursos em petróleo regem a geopolítica global. O fluxo do petróleo determina quem é dominante, quem é invadido, quem é posto em ostracismo fora da comunidade global. O controle físico sobre um segmento de oleoduto define maior poder geopolítico. Governos que se ponham nessa posição podem obter concessões gigantescas. Num golpe, o Kremlin pode condenar a Europa Oriental e a Alemanha a um inverno sem calefação. E até a possibilidade de Teerã controlar um oleoduto para o leste, até Índia e China, é pretexto para a lógica belicosa de Washington.


Mas o novo grande jogo não é a guerra por oleodutos. É a guerra pelos dutos pelos quais viaja a informação: o controle sobre as vias de cabos de fibras óticas que se espalham pela terra e pelo fundo dos mares. O novo tesouro global é o controle do fluxo gigante de dados que conecta todos os continentes e civilizações, conectando as comunicações de bilhões de pessoas e empresas.

Não é segredo que, na Internet e no telefone, todas as rotas que entram e saem da América Latina passam pelos EUA. A infraestrutura da Internet dirige 99% do tráfego que entra e que sai da América do Sul por linhas de fibras óticas que atravessam fisicamente fronteiras dos EUA. O governo dos EUA não mostrou qualquer escrúpulo quanto a quebrar sua própria lei e plantar escutas clandestinas nessas linhas e espionar os seus próprios cidadãos. Todos os dias, centenas de milhões de mensagens de todo o continente latino-americano são devoradas por agências de espionagem dos EUA, e armazenadas para sempre em armazéns do tamanho de pequenas cidades. Os fatos geográficos sobre a infraestrutura da Internet, portanto, têm consequências sobre a independência e a soberania da América Latina (...)"

"(...) O problema também transcende a geografia. Muitos governos e militares latino-americanos protegem seus segredos com maquinário de criptografia. (...) Mas as empresas que vendem esses equipamentos e programas caros mantêm laços estreitos com a comunidade de inteligência dos EUA. Seus presidentes e altos executivos são quase sempre matemáticos e engenheiros da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) capitalizando as invenções que eles mesmos criaram para o Estado de Vigilância. (...) Esse equipamento é vendido para a América Latina e outros países como útil para proteger os segredos do comprador, mas são, de fato, máquinas para roubar aqueles segredos (...)"

"(...) Os EUA não são os únicos culpados. Em anos recentes, a infraestrutura de Internet de países como Uganda tem recebido grandes investimentos chineses. Gordos empréstimos chegam, em troca de contratos africanos para que empresas chinesas construam a espinha dorsal da infraestrutura de Internet ligando escolas, ministérios do governo e comunidades ao sistema global de fibra ótica (...)"

"(...) A África vai-se conectando online, mas com máquinas vendidas por potência estrangeira aspirante ao status de superpotência. A Internet africana será o meio pelo qual o continente continuará subjugado no século 21?"

Fica a minha pergunta: e no Brasil? Quando vamos ter um Marco Civil da Internet? O debate está no Congresso Nacional desde 2009, mas precisa tomar conta das redes sociais e também das ruas.