Um selfie com Mujica





“Não é só uma mudança do sistema, é uma mudança de cultura, é uma cultura civilizatória. E não tem como sonhar com um mundo melhor se não gastar a vida lutando por ele. Temos que superar o individualismo e criar consciência coletiva para transformar a sociedade.” – José Pepe Mujica

Quantas pessoas você conhece que admiram o ex-presidente Mujica? E agora, me responda: quantas dessas pessoas defenderiam as ideias de Mujica? Não estou me referindo à sua situação social e nem às escolhas de vida que José Pepe Mujica fez após passar 12 anos nas prisões uruguaias. Neste momento de crise ética e política, precisamos refletir sobre a sua dignidade e também sobre o exemplo que ele vem dando para todos nós ao falar de princípios e de valores não monetários. 

Poucas pessoas sabem que Mujica gosta de ler Sêneca (50 A.C) e diversos livres pensadores do passado e do presente, e pouquíssimas se dão conta de que ele também é fruto de um longo processo histórico vivido pelo seu país, o Uruguai. Por exemplo, lá as universidades foram criadas muitas décadas antes do que as brasileiras; há quase cem anos, na Constituição de 1917, o Estado foi separado da influência da Igreja; o presidente colorado José Batlle y Ordóñez incentivou um verdadeiro laicismo radical no país e, desde lá não se vê símbolos cristãos nas câmaras de “ediles” (vereadores), nas salas de aula, nos tribunais e nem nos hospitais da rede pública. Todas as religiões são respeitadas e, na posse dos presidentes o juramento é em nome da Constituição uruguaia e não da Bíblia. Isso, por si só, já revela a seriedade e a radicalidade da democracia republicana construída pelos hermanos.

Mas tem mais: os uruguaios aboliram a escravidão quarenta e seis anos antes do que o Brasil; o país foi o pioneiro ao permitir o divórcio por iniciativa da mulher em 1913 enquanto que a lei brasileira foi aprovada apenas no final dos anos 70 (cinquenta e sete anos depois); as mulheres uruguaias conquistaram o direito ao voto em 1917 e as brasileiras somente em 1932 (quinze anos depois). Recentemente eles conseguiram avançar ainda mais nos seus direitos civis, com a legalização da relação entre pessoas do mesmo sexo, com a não punição à prática do aborto até a 12ª semana de gestação e se tornaram o primeiro país no mundo a comercializar a marijuana pelo próprio Estado, como política de saúde e de combate ao tráfico de drogas. Nós, brasileiros, em pleno século 21, ainda estamos enfrentando o conservadorismo político e religioso que invadiu o parlamento, as prefeituras, as delegacias de polícia, milhares de residências e milhões de mentes desesperadas e solitárias.

Do ponto de vista do sistema político, os partidos uruguaios são seculares e o Frente Amplio, fruto da coalizão de várias organizações e de cidadãos independentes, reúne democraticamente toda a esquerda uruguaia desde 1971 e governa aquele país desde 2005. Essa maturidade política do seu povo dificulta as manobras espúrias e o surgimento de uma bancada que imponha as "leis divinas” e/ou defenda o monopólio da comunicação. José Pepe Mujica e quase toda a torcida do Penharol e do Nacional sabem disso!

Portanto, um selfie com Mujica deveria levar em conta que além de admirá-lo (o que não está errado!) todo fã precisaria compreender o que ele e o seu povo representam. Os brasileiros, por exemplo, deveriam valorizar os postos Petrobrás e evitar as multinacionais Esso, Shell e Texas Co. Ao comprar produtos orgânicos de produtores locais estariam reconhecendo a importância de fortalecer as cadeias produtivas regionais etc e tal. Enfim, todas as ações do dia-a-dia estariam sendo consideradas como atitudes políticas, ou melhor, adquirindo um sentido humano, local e universal.

Ou seja: a vida de qualquer pessoa está cheia de provações individuais e coletivas, principalmente para aquelas que assumem um cargo público ou fazem parte de um centro estudantil, desde um policial da esquina até um chef de cozinha, de um dirigente partidário e muito mais de um governador. Pois é numa dessas situações que a concepção de poder se manifesta e os indivíduos são testados. Nunca apenas pelo discurso ou nas postagens de ocasião. Ou melhor, se quisermos saber o verdadeiro grau de liberdade que um homem ou uma mulher defende, basta arrancar-lhes a sua concepção de mulher, ou como cada um(a) se refere ou se relaciona com as mulheres negras e/ou indígenas. E mais: perguntar-lhes se têm algum preconceito homoafetivo ou de religião. 

As concepções de poder estão por toda parte, mas muitas vezes algumas faces e representações ficam ocultas, e se manifestam apenas quando alguém assume um cargo ou uma função coletiva. Nas redes sociais qualquer um(a) se sente o rei ou a rainha da cocada, mas é na vida real que a porca torce o rabo. Por isso, é bom exercitar a capacidade que cada um(a) tem de solidariedade e de fraternidade, sem perder o senso de justiça, pois o mundo que queremos construir é de homens e mulheres livres e fraternos, e não de pessoas agressivas e odiosas. Não adianta ficar adjetivando os demais ou tratando o Mujica como uma estrela de rock, pois o nosso desafio é construir uma constelação de organizações autônomas com a máxima convergência possível dos olhares e dos saberes que aprenderam a ser solidários e propositivos.

Compartilhar o poder – micro e macro - não é para qualquer um(a). Ainda mais numa sociedade que segue gerando homens e mulheres individualistas e egoístas, em que muitas pessoas já perderam a fé na humanidade e recorrem ao divino, às verdades absolutas ou ao isolamento, pois perderam a crença nos seres humanos, que são elas mesmas. Às vezes é preciso passar por situações difíceis e adversas para se colocar no lugar de outra pessoa, e para entender a subjetividade e objetividade de cada cultura e moral existente. Não queremos apenas uma mudança do sistema, mas da cultura que dá sustentação a este sistema falido.

O nosso futuro será sempre construído por meio de passos objetivos, firmes e consistentes, pois esses sim serão lembrados daqui a dez, vinte e cinquenta anos, e não por aqueles que gritam mais alto ou falam somente frases genéricas. São as atitudes individuais e, principalmente as coletivas, que permitirão gerar novas reflexões bem mais complexas e que irão nos proporcionar outras dimensões da consciência. Por exemplo: é preciso compreender que se o conservadorismo cultural e político vencer o movimento contra o golpe no Brasil, en breve Mujica y nuestros queridos hermanos uruguayos serán agredidos como estamos siendo nosotros, los brasileños. Portanto, temos que superar o regionalismo e o nacionalismo até criar uma consciência planetária que seja capaz de transformar radicalmente a nossa sociedade.

                                                      Porto Alegre, 18 de maio de 2016.

Ricardo Almeida