Nostalgia da Luz


Argumento apresentado por Ricardo Almeida após a projeção do filme Nostalgia da Luz, durante o evento em homenagem ao Ano Internacional da Luz, promovido pelo Instituto de Física da UFRGS.

Em 1973, eu tinha dezessete anos e costumava assistir a filmes e comprar livros em Rivera, no Uruguai. Havia nove anos o Brasil estava sob uma ditadura militar, e muitas obras foram proibidas por aqui... Mas lá na fronteira a gente podia vê-las, pois ainda se respirava os ares democráticos vindos daquelas bandas orientais. Lembro, inclusive, que muitos casais brasileiros iam até Rivera para casar, pois los hermanos reconheciam o divórcio desde 1913 e aceitavam o casamento de brasileiros. Enquanto isso, no Brasil, o divórcio ainda era tratado como uma heresia.

No entanto, naquele ano houve o golpe militar no Uruguai e também no Chile, e três anos mais tarde, na Argentina. Empresários brasileiros reproduziam naqueles países aquilo que eles haviam feito aqui com o apoio direto das forças armadas e das agências de espionagem norte-americanas (CIA e outras). E todas essas ações foram financiadas por grandes empresas internacionais que estavam se instalando em solo latino-americano em busca de mão-de-obra barata. Recordo as milhares de Kombis e televisores que cruzaram a fronteira logo após 1973 e, assim, aos poucos, eu fui compreendendo e me interessando sobre as relações políticas, econômicas e comerciais que regem este mundo dominado pelas grandes corporações.

Em 1975, fui estudar Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Pelotas e me surpreendi quando soube do acordo realizado entre o Ministério da Educação do Brasil (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID) para reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões impostos pelos EUA. Era muito fácil identificar o tecnicismo e a departamentalização (fragmentação) da universidade, além da vigilância de representantes do Serviço de Segurança Nacional – SNI – nas reitorias e até nas salas de aula. Somado a isso, também havia uma repressão ao movimento estudantil, sendo que os decretos 228 e 447 proibiam os estudantes de participar das discussões políticas. Contraditoriamente, aquele ambiente hostil e opressor era um verdadeiro convite para um jovem de dezenove anos se indignar e reagir contra aqueles absurdos. Ainda mais aqueles que tinham na memória alguma experiência democrática.
Lembro isso apenas para demonstrar o sentimento que deveriam ter os mortos e desaparecidos durante os regimes militares que dominaram na América Latina até meados dos anos 1980. O que faria um jovem que vê a sua liberdade sendo tolhida sem explicações? O que faria um professor que não pode ensinar a Teoria dos Conjuntos e a matemática moderna para os seus alunos? E aquele que não pode estudar astronomia? Digo mais: o que faria uma pessoa digna que sabe que militares e paramilitares estão torturando e matando jovens civis inocentes em troca de um simples prazer e/ou de algum benefício pessoal? O que vocês fariam se soubessem que alguns generais e políticos da situação enriqueceram por meio de propinas e de desvios oriundos das empreiteiras e das grandes obras realizadas naquele período, como a Ponte Rio-Niterói a Transamazônica e a Hidrelétrica de Itaipu? O que vocês fariam se soubessem que o seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS – estava financiando casas para a alta classe média e para os mais ricos do país? São perguntas que chilenos e brasileiros, principalmente esses dois povos, precisam fazer para que o passado se torne apenas uma página virada da história.

O filme Nostalgia da Luz é uma busca por esse tipo de atitude. O diretor chileno Patricio Guzmán procura resgatar uma parte dessa memória e provocar a máxima compreensão possível dos fenômenos. Tudo permeado por um forte desejo de justiça e também de tocar as sensibilidades. Segundo palavras do próprio diretor “um país sem documentários é como uma família sem um álbum de fotografias”. 

O roteiro do filme é muito bem elaborado e acompanha as reflexões de algumas pessoas que parecem viver em mundos paralelos, que pouco se aproximam. Começa com uma belíssima apresentação do deserto de Atacama e da magia daquele céu estrelado, onde um astrônomo faz as suas considerações sobre a origem da vida e do Universo. Depois é a vez de um arqueólogo refletir sobre a relação do tempo e dos acontecimentos históricos. E, finalmente, o diretor mergulha no martírio de algumas mulheres que buscam o corpo dos seus entes queridos no deserto, mortos pela ditadura de Pinochet. Embora fique bastante claro que a intenção de Guzmán era aproximar esses mundos paralelos e propiciar um diálogo entre eles, ele não consegue isso durante as entrevistas. Salvo pequenas referências, principalmente as vindas do arqueólogo. Então o filme deixa claro que todos fizeram um tipo de pacto do silêncio (inconsciente ou não) para não denunciar o passado mais recente do Chile. Algo parecido com o que acontece no Brasil, resguardadas as suas diferenças políticas e culturais.

Não se trata de um filme de ficção e nem mesmo de uma reflexão presa ao passado. A primeira conclusão que eu faço é a de que todos os protagonistas procuram algo que eles não sabem se irão encontrar: os astrônomos procuram pela origem da vida e do universo, utilizando os maiores telescópios que existem no planeta. Os arqueólogos buscam parte da memória da América Latina, pois no deserto de Atacama – cenário do filme –, rico em salitre e sem umidade, estão mumificados restos de corpos humanos, desde os povos primitivos, dos colonizadores, de pesquisadores e de historiadores que se perderam naquela imensidão. As mulheres buscam os corpos, ou parte dos corpos, dos seus entes queridos, já que o regime de Pinochet criou campos de concentração no deserto e também jogou milhares de corpos de opositores no mar e naquela região. Chama atenção uma fala do arqueólogo quando diz: “conseguimos nos interessar pelo passado mais longínquo, mas não conseguimos sequer pensar no que aconteceu vinte e poucos anos atrás”. Eis uma das principais provocações do filme.

A segunda reflexão que me veio à cabeça foi sobre o mito de Antígona, que trata do desejo que o ser humano tem de enterrar os seus mortos. Um rito de passagem que serve para dar sentido à vida, além de assimilar aquele sentimento de perda que felizmente ainda existe entre nós. Acredito que este foi o argumento que orientou o título do filme, pois a nostalgia nos remete à dor e à saudade, enquanto que a luz pode ser vista como uma expansão do universo, mas também, metaforicamente, como a necessidade de um conhecimento mais amplo e complexo. Vejam que no filme nem o astrônomo consegue se colocar no lugar daquelas mulheres e nem elas conseguem se libertar do passado e entender que é preciso recorrer à justiça dos homens. Ou ainda, que nós somos insignificantes em relação ao planeta e às galáxias.

Há muito tempo eu me incomodo quando alguém cita a teoria do Big Bang, pois para mim - aprendi isso com os mouros da Península Ibérica dos séculos 12, 13 e 14 - “o universo não tem começo e nem fim”. Como diz o astrônomo “toda a busca infinita sempre vai encontrar novas perguntas”, apesar de encontrar também algumas respostas provisórias, é claro! Essa é a minha terceira reflexão e ela não desmerece as buscas que os cientistas fazem sobre a origem dos fenômenos. Apenas trato cada uma delas como uma fronteira cultural, da ciência e/ou do pensamento, como pontos de referências e não como alguns querem, infinitamente. Ou ainda, como diria Edgar Morin: “uma teoria é científica quando a sua falsidade pode ser demonstrada”, do contrário ela seria apenas uma demonstração de uma experiência, de uma técnica, e não da ciência, que é sempre dinâmica e contraditória.

A minha quarta reflexão parte do princípio de que uma pessoa pode ter a sua máxima compreensão possível dos fenômenos e nunca de todas as dimensões desse mesmo fenômeno. Que dependendo do ponto de vista e da capacidade de raciocínio das pessoas, a leitura da realidade pode se modificar. O astrônomo, por exemplo, estava focado nas questões que aconteceram há milhões de anos luz, enquanto o arqueólogo, há 10 mil anos, e as mulheres ficaram presas aos anos da ditadura de Pinochet. A pergunta que fica é a seguinte: seria possível aproximar essas três dimensões da realidade? Adotar uma visão complexa e multidimensional da realidade? Eu diria que sim, mas que se trata de um exercício cultural a ser trabalhado, no qual o filme de Guzmán contribui de maneira exemplar. Esse parece ser o desejo do diretor.

Diferentemente dos seus documentários anteriores, em que ele utilizou uma linguagem considerada hiper-realista, Nostalgia da Luz é uma metáfora poética e profunda sobre o homem, a sua relação com as ciências, a religião, a política, o planeta Terra e o Universo. O deserto de Atacama foi escolhido como cenário porque lá coexistem todas essas dimensões da vida. No final, muitas perguntas ficam soltas no ar — e no universo, por que não? —, e isso é mais uma das qualidades do filme, pois cada um(a) pode responder às reflexões segundo a sua capacidade de elaboração e das suas convicções morais, religiosas e/ou científicas.

        Percebi que o desafio do diretor era o de identificar alguns "laços" que amarram essas reflexões e que permitissem viajar além do tempo passado, presente e futuro, misturando ciências, mistérios e até religiões. Isso fica claro ao entrevistar uma jovem astrônoma, filha de pais desaparecidos, que foi criada pelos avós - sendo que esses, na sua ingenuidade, haviam entregado o casal para os militares – em que ela diz já ter assimilado e entendido o seu passado, enquanto embala o filho pequeno para dormir. Enfim, o filme não aponta soluções coletivas e nem deixa claro se a justiça desejada pelos protagonistas e pelo diretor é divina ou terrena. Mas analisando a obra do Patricio Guzmán eu diria que ele se propôs apenas a revelar um retrato do Chile atual e por isso mesmo escolheu um título que falasse de esquecimento. Ou seja, da saudade (nostalgia) do conhecimento (luz) complexo.

                   Porto Alegre, outubro de 2015.

                  


Cine Hermes



Nunca canso de lembrar do Cine Hermes. É que a sua história se confunde com a minha infância e também pertence à memória de todos nós fronteiriços.  Além do mais, a vida do Seu Hermes se confunde com a história do século XX, pois ele vivenciou a chegada dos primeiros automóveis e das locomotivas na cidade, e também viu o surgimento do rádio, da televisão, do videocassete, dos DVDs, dos computadores e da internet. No entanto, foi com uma galena que ele acompanhou os horrores da primeira Guerra Mundial. Depois, ainda jovem, assistiu às imagens da segunda guerra nas telas dos cinemas que surgiam na fronteira... Mas agora, misturadas às trapalhadas e aventuras de Buster Keaton, Charles Chaplin, Laurel and Hard e William Boyd.

No ano de 1954, no período pós-guerra, quando as salas de cinema se proliferavam pelo mundo, o Seu Hermes resolveu comprar um projetor 16 milímetros e construir a sua própria sala de projeção. Ele era funcionário do Banco do Brasil e tinha um propósito muito simples: levar a magia do cinema para as crianças e adultos pobres da fronteira. Enquanto os cinemas das duas cidades projetavam Casablanca, E o vento levou..., Amarcord, Psicose, Lawrence da Arábia, Adivinhe quem vem para o jantar e 2001 – Uma Odisseia no Espaço, o Cinema Hermes projetava bons filmes do circuito alternativo e vários seriados da TV norte-americana.

Nos anos 1970 a fronteira Livramento-Rivera chegou a ter oito salas de cinema. Quase todas eram grandes salas... Mas, com a chegada da televisão e com muita pressão da fiscalização local, o Cinema Hermes teve que fechar as portas definitivamente em 1973.

Eis uma homenagem que fizemos para ele e também para inaugurar um pequeno cineminha na Estação Ferroviária da cidade.



A comida tem fronteiras?

No dia 20 de agosto de 2015, eu participei como palestrante do II Festival Binacional de Enogastronomia e Produtos do Pampa na fronteira Livramento-Rivera, al norte del Uruguay y al sur de Brasil e, juntamente com o Chef Mario del Bo, do Instituto de Gastronomia do Uruguai, tive que responder a seguinte pergunta: “A comida tem fronteiras?” A primeira e única ideia que me ocorreu foi a de que muitas comidas e ingredientes vieram com os nossos antepassados e que, aos poucos, elas foram se adaptando à região e às suas circunstâncias... Citei o croissant (crescente, em francês) que se transformou em medialuna, entre outras... Mas também citei algumas que foram criadas por aqui, como o arroz carreteiro e o charrá (será?)  etc. 


Mas achei muito importante definir o que é uma fronteira, pois entendo que algumas pessoas ainda as veem como limites, e nós fronteiriços as vemos como possibilidades de diálogos, de trocas, de interações e de convivências. Portanto eu respondi: Sim, a comida tem fronteiras, mas não tem limites. Também abordei sobre as diferenças que existem entre as fronteiras políticas (entre países) e as fronteiras culturais (entre costumes). No final, aproveitei para destacar as principais ações políticas e eventos de integração cultural que estão ocorrendo na faixa da fronteira Brasil-Uruguai. 

Saí de lá muito certo de que o festival, recém no seu segundo ano, já está maduro e forte... A comunidade assimilou a ideia e ele já envolve a agricultura familiar, os pequenos e os grandes produtores locais, os hotéis e os restaurantes das duas cidades, as escolas municipais, as universidades e a equipe do Slow Food Binacional (esqueci de alguém?). 


Portanto, eu acredito que agora os governos (locais, estadual e nacional) precisam elaborar planos e políticas culturais/turísticas de apoio aos festivais de gastronomia. O ministro Juca Ferreira, por exemplo, já sinalizou que o MinC vai publicar editais de gastronomia em 2016. E eu só tenho a agradecer à Jussara Dutra pelo convite e a todos os(as) envolvidos(as) pela organização desse importante festival regional. Vocês nos representam! Aproveitei a oportunidade e deixei a minha receita para uma "caçarola" de cultura regional (de território cultural). Modo de preparo: juntar tudo o que tem de simbólico da integração cultural e misturar bastante. Cozinhar por um bom tempo em fogo brando, cuidando pra não desmanchar os ingredientes... Adelante!!!

David Coimbra vai comentar apenas sobre o futebol?

    (Resposta ao jornalista David Coimbra. Matéria “Quem é a elite perversa de Lula”, publicada no jornal Zero Hora, no dia 27 de julho de 2015. Para ler esse artigo, acesse: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/07/david-coimbra-quem-e-a-elite-perversa-de-lula-4810594.html)


    Prezado David Coimbra

    EMAIL ENVIADO: A gente não se conhece pessoalmente e eu quase não acompanho os teus comentários sobre o futebol, e muito menos sobre a política. Não é por falta de tempo, e sim porque os de futebol já não me apaixonam tanto como antes, e porque a política gaúcha entrou numa grenalização absurda. E, claro, porque eu entendo que os teus comentários anti-PT alimentam este triste momento da política gaúcha.

    Eu simplesmente não quero participar e nem me alimentar desse tipo de reflexões. No entanto, incentivado por uma estranha curiosidade, li o teu artigo "Quem é a elite perversa de Lula" e percebi que ele contém muitos argumentos que traduzem o discurso do senso comum anti-PT e, por consequência, fomenta a reação dos que são a favor do PT. Ou seja, quase tudo o que dizes nesse artigo já tinha sido dito antes, de alguma maneira, por algum político da oposição e/ou por pessoas declaradas anti-PT, nas ruas, nos jornais ou nas redes sociais.

    Não conheço a tua opinião sobre o papel dos formadores de opinião e também não quero questionar a tua liberdade de expressão. A minha preocupação é com a falta de reflexões sobre os valores (não monetários) e com a propagação do ódio que começa na grande mídia, se espalha pelas redes sociais e já começa a se manifestar nas ruas, nos aviões e nos restaurantes do nosso país. Não sou fatalista, mas estou preferindo dialogar e prevenir do que arriscar qualquer aventura que possa prejudicar a todos nós.

    Como tu és um "formador de opinião" e com muitos seguidores no estado que se diz o "mais politizado do país", eu entendo que merecias essas minhas respostas e considerações. Vais ver que algumas são provocações, mas outras são contextualizações.

    Enfim, eu escrevi pensando nos teus leitores, amigos e/ou "inimigos" (é assim que se tratam na grenalização), e sequer pensei em tentar te tirar da zona de conforto. Agora, depois de postar nas redes sociais, eu estou vendo que muitas pessoas queridas e sensatas se identificaram com as minhas reflexões e compreendi que eu acabei fazendo eco para muitos desejos que estão reprimidos e não possuem canais para se expressar.

    Se fizeres uma leitura atenta, vais perceber que as regras da política são bem mais complexas e dinâmicas do que as do futebol. Por isso, te questionei já no título do meu artigo.

    P.S. Eu ainda não havia percebido que estamos numa semana de GRENAL.
_______________________________________________________________________
 

    A RESPOSTA: Veja as minhas considerações sobre o teu artigo:

    Em primeiro lugar, Lula não é o único que vê o PT e os governos do PT sendo criticados, pois esse ódio existe desde que o PT foi fundado, em 1980. Muitos intelectuais, professores e artistas renomados também diriam o mesmo... É só tu pesquisares por “ódio ao PT” no Google, que vais encontrar comentários na BBC de Londres, no jornalismo internacional e também do José Pepe Mujica. No Brasil verás a opinião de Mino Carta, de Franklin Martins e até de Chico Buarque, de Paulo Freire e de tantos livres pensadores insuspeitos... Talvez alguns expertos digam que não concordam com isso, mas tudo deve ser visto como parte de um sofisticado e legítimo jogo político (dos “interésses”, diria o Brizola) e, claro, da luta de classes, num país de capitalismo tardio, que recém ensaia o seu primeiro período democrático mais longo. Mas isso também passa pelo grau de informações e pela capacidade de reflexão de cada indivíduo. Eu entendo que tu estás vendo a política como um jogo de futebol e achas que ao escolher um time o resultado poderá mudar. Tens que entender que a política é mais complexa do que um simples jogo de futebol.

    Neste sentido, e para tentar elevar o nível do debate, eu vou responder cada uma das tuas “acusações”, meu caro jornalista. Se a popularidade de Dilma chegou aos 7% é porque o governo, depois de vários anos de incentivo ao consumo, resolveu reconhecer publicamente que a crise econômica mundial está mais longa do que costumava ser. Saiba que o capitalismo sempre entra em crise, e que não precisas ler o velho Marx para entender esse fenômeno. Basta ler os capitalistas Keynes, Milton Friedman e outros contemporâneos, com suas posições distintas, para aprender sobre essas crises cíclicas e/ou em ondas... Mas, quero te dizer que as tuas críticas também representam uma crise de valores (de princípios), e isso é o que mais me preocupa, pois utilizas uma posição privilegiada para atacar os teus adversários políticos. E ao incentivar o ódio também geras manifestações autoritárias e covardes, como jogar bombas na sede do Instituto Lula, enforcamento de bonecos da Dilma e agressões físicas aos adversários. Isso sem falar da "grenalização" que se propaga como praga nas redes sociais.

    Sim, a crise econômica poderia ter chegado bem antes ao Brasil e acompanhado o resto do mundo. Aí onde estás morando, nos EUA, por exemplo, sei que a população pobre ainda está sentindo bastante os efeitos da quebradeira norte americana desde 2008. Portanto, já faz sete anos! Os “gringos” não possuem sequer um sistema público de saúde, e quase tudo é pago. Por que tu não falas um pouco sobre isso? Quanto estás pagando pelo teu tratamento de saúde? Como as pessoas analisam o sistema de saúde daí?

    Aqui a crise chegou bem mais tarde porque os governos Lula e Dilma apostaram no consumo interno e resolveram baixar o valor da energia elétrica, manter o preço da gasolina, diminuir os impostos sobre a “linha branca” doméstica, e permitir que boa parte da população tivesse acesso a eletrodomésticos, automóveis, casas, apartamentos etc. Com isso foram gerados milhares de empregos e a população obteve mais renda em todas as regiões do país. Estamos de acordo que graças aos governos Lula e a Dilma os pobres também começaram a viajar de avião e experimentaram a comida de restaurantes. Todos sabem que a política de distribuição de renda fez o dinheiro circular e até o maior dos desinformados soube aproveitar esta oportunidade. Qual é o problema em reconhecer isso, ilustre jornalista?

    Embora tu não concordes, o Lula tem razão ao dizer: "Tudo que é conquista social incomoda uma elite perversa neste país". Pois a elite econômica (incluindo o Grupo RBS) se aproveita dos momentos de crise econômica do capitalismo para apontar um único culpado... E acredite! Foi assim e sempre será... Essa é a maneira que ela encontra para negociar nos bastidores e evitar as investigações feitas pela Polícia Federal e pelos tribunais, pois todos nós sabemos que existe muito mais lama do que essa que está aparecendo na mídia tradicional. Tu também deverias saber, e acho que sabes, que a Operação Zelotes é um claro exemplo disso. Já pensaste que o teu salário e o teu tratamento de saúde poderiam estar sendo pagos com a sonegação de recursos (impostos) que deveriam ser investidos em mais creches, mais escolas, mais postos de saúde e mais assistência social? Pensa nisso! Um justiceiro como tu deveria falar de todas as injustiças do mundo, e não somente daquelas que interessam no momento aos teus patrões.

    É verdade que uma parte da elite brasileira (e mundial, digo eu) admira o Lula. Os banqueiros lucraram com os juros das dívidas, mas também com todas as compras a prazo realizadas neste país. Entendeste como os bancos ganham dinheiro? Portanto, todos lucraram bastante nos governos do PT. Mas é preciso lembrar que não foram somente eles... Segundo a ONU, o Brasil tirou milhões de pessoas da linha da pobreza extrema, o agronegócio e a indústria automobilística cresceram como nunca neste período recente... Enfim, quase todo o mundo ganhou nestes anos de fartura. O que tu querias? Vender o patrimônio público e esperar até a próxima crise, como fazem todos os governos neoliberais? Uma ruptura do capitalismo? Seguir as orientações do Partido Comunista Chinês? Ou fazer a política do Obama? Afinal, qual é a tua proposta para sair da crise do capitalismo mundial? Ao ler os teus comentários percebo que tu estás utilizando a mesma lógica da oposição brasileira. Ou seja, estás sem propostas para o país e, principalmente, não reconheces que os mais pobres (e não somente os banqueiros) melhoraram de vida. Mas lembra que, se os atuais oposicionistas estivessem no governo seria bem pior do que aquilo que tu estás criticando. Atualmente eles governam alguns estados (SP, PR e RS, por exemplo) e já governaram o país. Veja que os senadores do PSDB e de outros partidos (onde será que anda o Lasier Martins?) estão defendendo a venda do Pré-Sal, o alinhamento aos EUA e outras políticas entreguistas. Qual é a tua opinião sobre isso, ilustre jornalista do Grupo RBS?

    Tu tens razão: o Eike Batista emergiu graças a generosos empréstimos do BNDES, e depois submergiu rapidamente. Mas tu lembras que a Rede Globo também foi salva da falência durante o Governo Lula? Se isso não acontecesse, o Grupo RBS (aquele a quem tu serves) poderia sucumbir junto à sua progenitora. Sinceramente, eu não consigo prever as consequências culturais e políticas, caso esses empréstimos não fossem dados a essas e outras empresas nacionais. Em parte concordamos que devemos analisar a fundo o passivo e o planejamento estratégico dessas empresas antes de dar um empréstimo, mas as leis de mercado no mundo capitalista são competitivas e turbulentas, e não perdoam vacilações e/ou aventuras, como as do Eike Batista. Acredito que em breve verás a falência da revista Veja, do grupo Abril, e de outras grandes empresas que parecem maduras... E não poderás culpar a Dilma.

    Tu precisas entender que o Lula tem aquela mania de “ser amigo” de todo mundo, e eu concordo que é um erro dele. Aliás, eu acredito que ele te trataria de forma amistosa, mesmo depois dessas tuas duras críticas e provocações... Mas cuidado! Agora ele está ficando um pouco mais nervoso e já processou a revista Veja, e ganhou na justiça. Parece que está processando a revista Época e deve ganhar também. Isso é uma prova de que a liberdade e a justiça estão começando a ser uma prática neste país. No entanto, contraditoriamente, eu também percebo um sinal de sabedoria do Lula, pois se trata de alguém que fez muita força para ser aceito por uma sociedade desigual e preconceituosa. Aliás, eu acredito que isso até se tornou uma estratégia pessoal e política dele, baseada no diálogo, ao invés da força, na construção coletiva, ao invés da imposição, e de tudo aquilo que a gente deveria elogiar.

    As famílias Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, citadas por ti, sabem muito bem disso... Ou tu achas que eles só trabalham para os governos militares, para o PSDB e para governos conservadores? Tu não percebes que o que estava em jogo, era a estabilidade econômica do país e os milhares de empregos gerados por essas empresas? Isso não é pouca coisa, meu caro jornalista. Tu precisas entender que sem essas empresas o Brasil não teria o PAC I e o PAC II, as novas estradas, pontes e ferrovias, e nem mesmo o Pré-Sal... Se erros recentes foram descobertos pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, não foi somente em relação aos políticos do PT. Veja que os empresários e doleiros que aceitaram participar das delações premiadas, disseram que o Aécio, o Eduardo Cunha e a maioria da bancada do PP gaúcho estão envolvidos nos esquemas. Vamos acompanhar essas declarações? Isso já foi publicado no site do TSE e é de conhecimento de todos que existiram relações e apoios envolvendo quase todos os partidos políticos da situação e da oposição. Eu estou contente com isso, pois a sujeira finalmente está aparecendo aos olhos de todos. Mas, como jornalista, não deverias citar apenas um lado da “moeda”. Por isso, eu digo que os teus comentários sobre política revelam o tipo de jornalismo parcial que decidiste praticar.

    As famílias que tu citaste são parte da elite brasileira. Mas tens que entender que elas sempre apoiaram quem pode ganhar as eleições, ou apoiaram os dois ou mais concorrentes... É uma velha tática de evitar surpresas, e também porque os seus interesses estão em obras nos estados governados pela oposição. Basta analisar as obras realizadas em São Paulo, no Rio de Janeiro e até no Rio Grande do Sul para entenderes o que eu disse.

    Também é verdade que o PT cede espaços e que uma parte da elite política, representada por Maluf, Sarney, Calheiros, Temer, entre outros, apoiou as políticas de Lula. Mas foi apenas uma parte da elite, pois a outra parte continuou na oposição, nas trincheiras da FIESP, da Rede Globo, do Grupo RBS (onde tu trabalhas) e em outras instâncias de poder real desse enorme e complexo país. Tu querias que o PT ignorasse a força dos partidos e de seus representantes nos estados em que ele não teve uma boa votação? Sim, até Fernando Collor acabou entrando para a base de sustentação das políticas do governo, representando Alagoas, já que a Heloísa Helena, do PSol, não concorreu com ele ao senado e não entendeu o jogo político daquela época.

    Devias comemorar que muitas contas na Suíça estão sendo descobertas. Mas tu deves saber que as do HSBC podem pegar os teus patrões. Eu imagino que tu já pensaste nisso e até entendo porque não falas uma só palavra nesse assunto. Ainda bem que nós temos a liberdade das redes sociais para fazer o contraponto e revelar o que está por trás das tuas palavras.

    Estamos de acordo que a política econômica do segundo governo Dilma está trazendo prejuízos para a população e que os assalariados como tu (e a maioria dos teus amigos, dizes tu) estão preocupados com o sustento de suas famílias, com o poder de compra do salário mínimo, com o desconto do Imposto de Renda, com a falta de água e de luz a cada chuva, com as ruas esburacadas, com os assaltos, com a educação deficiente, com os hospitais lotados e com o preço do tomate, etc. etc. etc. Isso é maravilhoso, não achas?!!! Todos estão com a oportunidade de aprender que a crise do capitalismo e a luta de classes sempre existiram e vão continuar existindo... E também que isso não pode ser entendido analisando apenas questões conjunturais e de curto prazo. É preciso ir mais fundo para compreender a estrutura do Estado moderno e as contradições do sistema capitalista mundial. Por exemplo, saiba que o capital não tem fronteiras, e que as relações internacionais também definem o grau de desenvolvimento do capitalismo em um determinado país. Se, em 2015, o Brasil está atravessando uma crise de consumo e de valores (não monetários), temos que aprender sobre as suas causas e circunstâncias... Mas depois temos que compartilhar essas descobertas, quando possível, com os nossos amigos, leitores e familiares. Principalmente com aquela parte da população que não faz parte da elite brasileira, mas que por pensar apenas em questões circunstanciais, imediatas e/ou individuais, acaba caindo nas armadilhas e no jogo político da elite que diz criticar. Eu entendo que tu, conscientemente ou não, estás caindo numa dessas armadilhas!

    Enfim, tu nem precisas apoiar o Lula para fazer uma análise política contextualizada, mas tampouco deverias odiá-lo. O papel de um jornalista sério seria mostrar o contraditório e oferecer opiniões alternativas para os seus leitores. Por isso, eu afirmo que tu não fazes jornalismo e sim defendes “interésses” claros e objetivos. Tu dizes, por exemplo, que “nós ainda não temos um nível ideal de segurança, saúde e educação públicas, que o país ainda coloca presos em masmorras medievais, que 60 mil pessoas são assassinadas e outras 50 mil morrem em acidentes de trânsito a cada ano, que o país gasta bilhões para construção de estádios em lugares onde praticamente não existe futebol, que tem sua principal estatal sangrada em bilhões de dólares pela navalha da corrupção”, mas não falas uma linha sequer que o país avançou muito nestes últimos anos, e nessas mesmas políticas públicas. Por quê?          

    Por tudo isso tu és relacionado seguidamente no rol de jornalistas “apaniguados” e financiados pela RBS para criticar o Lula e a Dilma. Tenho certeza que tu sabes disso! Eu apenas quero te lembrar que tu já abandonaste a tua origem de classe em favor de um status e de um emprego... Mas que também não fostes o primeiro e nem serás o último! Jornalistas do teu calibre os empresários compram e descartam quando querem. Para confirmar isso, te aconselho analisar a história do Grupo RBS nos últimos 30 anos. São as leis do mercado...

    Antes de concluir, eu gostaria que tu refletisses sobre alguns dados:

1. Produto Interno Bruto:
2002 – R$ 1,48 trilhões
2013 – R$ 4,84 trilhões

2. PIB per capita:
2002 – R$ 7,6 mil
2013 – R$ 24,1 mil

3. Dívida líquida do setor público:
2002 – 60% do PIB
2013 – 34% do PIB

4. Lucro do BNDES:
2002 – R$ 550 milhões
2013 – R$ 8,15 bilhões

5. Lucro do Banco do Brasil:

2002 – R$ 2 bilhões

2013 – R$ 15,8 bilhões

6. Lucro da Caixa Econômica Federal:
2002 – R$ 1,1 bilhões
2013 – R$ 6,7 bilhões

7. Produção de veículos:
2002 – 1,8 milhões
2013 – 3,7 milhões

8. Safra Agrícola:
2002 – 97 milhões de toneladas
2013 – 188 milhões de toneladas

9. Investimento Estrangeiro Direto:
2002 – 16,6 bilhões de dólares
2013 – 64 bilhões de dólares

10. Reservas Internacionais:
2002 – 37 bilhões de dólares
2013 – 375,8 bilhões de dólares

11. Índice Bovespa:
2002 – 11.268 pontos
2013 – 51.507 pontos

12. Empregos Gerados:
Governo FHC – 627 mil/anoGovernos
Lula e Dilma – 1,79 milhões/ano

13. Taxa de Desemprego:
2002 – 12,2%
2013 – 5,4%

14. Valor de Mercado da Petrobras:
2002 – R$ 15,5 bilhões
2014 – R$ 104,9 bilhões

15. Lucro médio da Petrobras:
Governo FHC – R$ 4,2 bilhões/ano
Governos Lula e Dilma – R$ 25,6 bilhões/ano

16. Falências Requeridas em Média/ano:
Governo FHC – 25.587
Governos Lula e Dilma – 5.795

17. Salário Mínimo:
2002 – R$ 200 (1,42 cestas básicas)
2014 – R$ 724 (2,24 cestas básicas)

18. Dívida Externa em Relação às Reservas:
2002 – 557%
2014 – 81%

19. Posição entre as Economias do Mundo:
2002 – 13ª
2014 – 7ª

20. PROUNI – 1,2 milhões de bolsas

21. Salário Mínimo Convertido em Dólares:
2002 – 86,21
2014 – 305,00

22. Passagens Aéreas Vendidas:
2002 – 33 milhões
2013 – 100 milhões

23. Exportações:
2002 – 60,3 bilhões de dólares
2013 – 242 bilhões de dólares

24. Inflação Anual Média:
Governo FHC – 9,1%
Governos Lula e Dilma – 5,8%

25. PRONATEC – 6 Milhões de pessoas

26. Taxa Selic:
2002 – 18,9%
2015 – 14,25%

27. FIES – 1,3 milhões de pessoas com financiamento universitário

28. Minha Casa Minha Vida – 1,5 milhões de famílias beneficiadas

29. Luz Para Todos – 9,5 milhões de pessoas beneficiadas

30. Capacidade Energética:
2001 – 74.800 MW
2013 – 122.900 MW

31. Criação de 6.427 creches

32. Ciência Sem Fronteiras – 100 mil beneficiados

33. Mais Médicos (Aproximadamente 14 mil novos profissionais): 50 milhões de beneficiados

34. Brasil Sem Miséria – Retirou 22 milhões da extrema pobreza

35. Criação de Universidades Federais:
Governo FHC – zero
Governos Lula e Dilma – 18

36. Criação de Escolas Técnicas:
Governo FHC – 0
Governos Lula e Dilma – 214
De 1500 até 1994 – 140

37. Desigualdade Social:
Governo FHC – Queda de 2,2%
Governo PT – Queda de 11,4%

38. Produtividade:
Governo FHC – Aumento de 0,3%
Governos Lula e Dilma – Aumento de 13,2%

39. Taxa de Pobreza:
2002 – 34%
2012 – 15%

40. Taxa de Extrema Pobreza:
2003 – 15%
2012 – 5,2%

41. Índice de Desenvolvimento Humano:
2000 – 0,669
2005 – 0,699
2012 – 0,730

42. Mortalidade Infantil:
2002 – 25,3 em 1000 nascidos vivos
2012 – 12,9 em 1000 nascidos vivos

43. Gastos Públicos em Saúde:
2002 – R$ 28 bilhões
2013 – R$ 106 bilhões

44. Gastos Públicos em Educação:
2002 – R$ 17 bilhões
2013 – R$ 94 bilhões

45. Estudantes no Ensino Superior:
2003 – 583.800
2012 – 1.087.400

46. Risco Brasil (IPEA):
2002 – 1.446
2013 – 224

47. Operações da Polícia Federal:
Governo FHC – 48
Governo PT – 1.273 (15 mil presos)

48. Varas da Justiça Federal:
2003 – 100
2010 – 513

49. 38 milhões de pessoas ascenderam à Nova Classe Média (Classe C)

50. 42 milhões de pessoas saíram da miséria

    Estes dados foram extraídos do artigo “Alguém aí é a favor da corrupção?”, do cineasta gaúcho Jorge Furtado (http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/jorge-furtado/algu%C3%A9m-a%C3%AD-%C3%A9-favor-da-corrup%C3%A7%C3%A3o)

    FONTES:

    47/48 – http://www.dpf.gov.br/agencia/estatisticas

    39/40 – http://www.washingtonpost.com

    42 – OMS, Unicef, Banco Mundial e ONU

    37 – índice de GINI: http://www.ipeadata.gov.br

    45 – Ministério da Educação

    13 – IBGE26 – Banco Mundial

    Espero que tu tenhas entendido porque a crise demorou tanto para chegar ao Brasil e como a elite “perversa” age nos momentos de crise. Na verdade, nós ainda precisamos aprender muito com as crises do sistema capitalista para elevar o nível de organização da sociedade brasileira e mundial. E, para finalizar, eu quero te fazer uma sugestão: faz um esforço intelectual para entender o sistema político, social e econômico global ou volta para os teus comentários sobre o futebol. O futebol é bem diferente da política, e ficará bem mais fácil compreender as disputas e as suas contradições.

Um abraço fraterno

Ricardo Almeida                          Porto Alegre, 29 de julho de 2015.