O movimento das ondas...

Fotografia de Ricardo Almeida

Manifesto (quase) futurista




"Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára"
Cazuza
1. Um espectro ronda a vida das nossas organizações: é o fantasma da nova era da informação e do conhecimento. Estamos vivendo um desses raros momentos decisivos da história humana e, ao mesmo tempo, as nossas organizações estão cada vez mais dilaceradas. Sabe por que isso está acontecendo? É que a sociedade industrial está sendo substituída pela sociedade da informação e do conhecimento. Quem ainda não se atualizou em conceitos, métodos e sentimentos, não consegue se comunicar nessa nova dinâmica, que é totalmente diferenciada das velhas práticas hierárquicas industriais;

2. Neste momento, as nossas vidas estão em jogo, assim como as vidas futuras de nossos filhos, netos... Se por um lado, presenciamos a falência das antigas concepções (consciências) de organizações que aprendemos no passado, por outro continuamos sendo ameaçados por velhas manifestações racistas, homofóbicas e nacionalistas;

3. Os novos líderes estão sendo incapazes de compreender e traduzir a complexidade da vida moderna. Uma vida caracterizada pela forte presença de indivíduos mais bem informados, pelo crescimento de conquistas de direitos individuais, surgimento de redes de informação, velocidade da comunicação (televisão e internet), mas também pela dificuldade em traduzir tanta informação em novos conceitos, pela incompreensão da transversalidade dos fenômenos (complexidade), a má ocupação do tempo ocioso e pela triste proliferação de grupos de pessoas céticas, dispersas e solitárias (principalmente nas grande cidades);

4. Toda estrutura organizacional criada de forma espontânea e aparentemente natural tem levado as pessoas à descrença e ao desânimo. Em alguns casos, vimos uma burocratização dos relacionamentos afetivos e uma enorme dificuldade de comunicação, que respeite a diversidade de linguagens, de etnias, de sexualidades, de gêneros, de ideologias, de religiões, de classes sociais, etc.;

5. A maioria das alternativas surgidas ainda reproduzem os sistemas burocráticos, centralizados e tiranos, pois não possuem democracia interna. Embora o discurso dos seus "líderes" (?) fale em participação e em democracia, na prática não consegue esconder suas contradições (a teoria versus a prática);

6. Uma epidemia de fracassos organizacionais acontece porque a  maioria das pessoas ainda se baseia na concepção hierárquica da Igreja, dos exércitos, das velhas fábricas da 1ª e da 2ª revolução industrial e dos partidos centralizados;

7. A maioria dos desejos, dos sonhos e dos planos ficam apenas no papel, e acabam servindo para fins políticos de pequenos grupos. Ou melhor, como os novos "líderes" não percebem a importância da reflexão ampla e coletiva, pois acreditam cegamente nos seus pré-diagnósticos parciais, não incentivam a emancipação de sujeitos históricos conscientes. Isto é, não adotam uma práxis coletiva, transformadora e eficaz;

8. É preciso compreender que uma organização de "novo tipo", para ser eficaz, deve estar orientada por um propósito maior, que una a maioria das pessoas envolvidas e seja sedimentada por valores (princípios) democráticos radicais. Ao mesmo tempo, as pessoas envolvidas não podem ser tratadas como "objetos", mas como sujeitos de uma ação individual e coletiva;

9. Esta reflexão apareceu superficialmente no pensamento do jovem Marx, se aprofundou em Gramsci, e está presente na teoria de Max Weber sobre a importância das "burocracias". Tornou-se um dos pilares da pedagogia libertária de Paulo Freire e continuou sendo aprofundada nas obras de Norberto Bobbio, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Pierre Bourdieu e de Dee Hock – fundador e CEO Emérito Visa, além de outros contemporâneos. Ou seja, trata-se de uma profunda reflexão sobre o período pós-industrial, e principalmente da atual era da informação e do conhecimento;

10. Na história política, essa reflexão tomou corpo na crítica ao estalinismo, ao marxismo dogmático e ao surgimento dos estados burocráticos, e se fortaleceu no chamado Maio de 68, na França. No Brasil, chegou um pouco mais tarde, no início dos anos 80, contornando a construção do Partido dos Trabalhadores, da CUT e do MST;

11. Na verdade, trata-se de uma busca pela identificação do propósito (Para quê estamos aqui? O que queremos nos tornar?) e dos princípios (Os fins justificam os meios?) de cada organização. Mas também faz o questionamento da eficiência da estrutura organizacional adotada;

12. Portanto, é preciso traduzir a mais alta aspiração das pessoas envolvidas no processo organizativo e, ao mesmo tempo, criar diferentes e combinadas formas de organização que permitam a implementação de um determinado projeto coletivo e estratégico. As pessoas não podem estar organizadas apenas para "eleger o candidato X, Y ou Z" ou para "ganhar dinheiro". Um propósito precisa ser compartilhado e experimentado por todos, sem chavões e nem adjetivos, e juntamente com os princípios (valores), deve servir para orientar e unificar a ação dos membros da organização em projetos autônomos e convergentes (num centro estudantil, numa entidade de classe, na construção de um Partido, num comitê de campanha, num mandato parlamentar, numa empresa etc.);

13. Numa sociedade que tiver a democracia como princípio básico e universal, as organizações, os governos e o Estado precisam ser controlados permanentemente pela sociedade civil. Isso somente poderá acontecer se tivermos organizações de "novo tipo" vigilantes, com lideranças que reflitam sobre e compreendam esse novo momento da história humana;

14. Esse processo será sempre uma reflexão cheia de surpresas, de conflitos, de piadas e até de risos, pois em cada uma delas se revelarão as mais diferentes visões e contradições. Somente o tempo e a própria experiência é que deverão propiciar uma definição mais clara sobre os melhores caminhos a percorrer;

15. Mas é somente através da reflexão sobre essas experiências contraditórias que as pessoas se motivarão até se tornarem confiantes, para construir uma nova cultura e, consequentemente, os alicerces de uma nova sociedade. Agora, independentes de fetiches, de cargos e de status quo.
          Florianópolis, março de 2009

          Ricardo Almeida

O espelho, o reflexo e a práxis

“É que narciso acha feio o que não é espelho”
Caetano Veloso
Historiadores dizem que os colonizadores presenteavam os nativos com um espelho quando pretendiam “domesticá-los”. Esse simples gesto continha dois significados contraditórios: por um lado, os “conquistadores” conseguiam alcançar os seus objetivos, e por outro, esses mesmos nativos conseguiam enxergar pela primeira vez os seus próprios rostos e os seus belos ornamentos. Portanto, também era um exercício espontâneo de reconhecimento da existência de si mesmo, como parte de uma identidade coletiva e cultural. Os espelhos também foram utilizados por diversos escritores como símbolo de algo que permite a revelação ou a descoberta de uma subjetividade, antes oculta. Já os antropólogos dizem que uma cultura somente se reconhece a partir de outra, de uma visão crítica e distanciada de si mesma, que toda cultura precisa de uma visão “de fora” para se ver plenamente. Por isso, é muito importante exercitar esse olhar de fora, para notar que os nossos hábitos, gestos e reações afetivas não são tão naturais assim, mas que são frutos de um processo histórico, coletivo, consciente e também inconsciente.
Ainda hoje é comum encontrarmos pessoas que carregam consigo essa herança colonial que faz com que queiram “colonizar” o Outro, partindo do princípio de que a sua cultura está mais correta, e que a do Outro contém “desvios”, “erros” etc. No entanto, ao mesmo tempo, começamos a entender e a aceitar que somos uma “civilização” só, com inúmeras culturas diferenciadas e que é preciso aprender a conviver com o Outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, das suas diferenças. Finalmente, estamos considerando a subjetividade de cada uma das culturas e a relação que os indivíduos estabelecem entre si, e também a considerá-las em relação às instituições, compreendendo as diferentes singularidades políticas, econômicas, sociais e culturais.
Na teoria, já assimilamos que somos assim, justamente pela complexidade subjetivo­-objetiva que adquirimos e pelas características da própria sociedade contemporânea, onde mantemos laços e relações reflexivas permanentes com outras culturas, em maior ou menor grau. Analisando desse modo, aos poucos vamos diminuindo consideravelmente os riscos de uma apologia a um dos lados, e evitando aquele velho e conhecido pensamento maniqueísta e/ou chauvinista do “nós versus vocês”. Dentro dessa ótica é que se apresenta o maior desafio político: repensar a nossa práxis e as relações que as nossas organizações (empresas, sindicatos, associações de bairro, centros acadêmicos, prefeituras e conselhos) mantêm entre si e com os seus países, objetivando um pensamento além fronteiras, sem perder a noção de identidade e de singularidade política e cultural de cada uma.
Neste processo de reflexão e de construção individual e coletiva, precisamos estar preparados para rir e para ouvir lamentos. Pessoas céticas tentarão nos desanimar de prosseguir nesta nossa investida. Muitos daqueles que deviam ensinar a ver e a transformar a realidade irão reproduzir suas reflexões acadêmicas, sem o mínimo de comprometimento prático. Precisamos entender que alguns pensadores irão preferir a confortável postura de críticos e de observadores do que “botar a mão na massa” e tentar transformar essa complexa realidade.
Durante os períodos de crise de paradigmas, a grande maioria das pessoas ignora que as mudanças tecnológicas também acabam destruindo conceitos e que é sempre preciso repensar essas mudanças na prática e na teoria. Foi assim no início da Idade Moderna, quando Cervantes e Shakespeare inventaram o humano ao nos propor uma aventura ética e coletiva. Foi assim na Primeira Revolução Industrial, quando Kant, Hegel, Feuerbach, Marx e Engels refletiram profundamente sobre o conhecimento e a condição humana, sob as amarras da nova sociedade que surgia. Também foi assim na Segunda Revolução Industrial, quando Freud, Jung, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Gramsci, Eric Fromm, W. Reich, H. Marcuse, R.D.Lang, Agnes Heller, Hannah Arendt e, mais recentemente, Paulo Freire mergulharam profundamente no inconsciente individual e coletivo para resgatar o papel do indivíduo oprimido na sociedade totalmente industrializada. Mesmo assim, muitas pessoas ainda ignoram que em quase todo o século 20, e principalmente a partir dos anos 70, a humanidade vivenciou diversas lutas por liberdades individuais e, definitivamente, o ser humano já não é o mesmo que existia tempos atrás. Nos últimos 500 anos, tivemos muitas lutas, buscas e conflitos. Milhões de nativos do continente americano foram massacrados a machadadas pelos colonizadores europeus, outros milhões de africanos foram arrancados de suas coletividades para morrerem como escravos nas nações além mar, duas grandes guerras mundiais destruíram várias cidades e acabaram com a vida de milhões de soldados e de civis inocentes. Apesar de tudo, ainda há quem afirme que “antes era bem melhor do que hoje”. Percebe-se que muitos ainda não entenderam o mal estar da cultura, e que ainda lhes falta muita reflexão e muita sensibilidade prática.
Neste longo período da história humana, aprendemos que o futuro não existe, mas que é nele que iremos viver. Concordo que a realidade se tornou muito mais complexa, mas também concordo que as pessoas de hoje possuem muito mais informações e conhecimentos do que antes. Se muitas daquelas nossas ilusões deterministas caíram por terra, é porque as nossas certezas já não existiam mais. Sabemos que a nossa imaginação ainda não chegou ao poder, mas também sabemos que conseguimos significativos avanços humanitários e democráticos. Apesar dos tropeços, erros, desistências e desilusões, uma dura guerra de posições e de movimentos continua existindo e a luta de alguns ainda permanece permanente. Se demos muitos passos atrás, agora já podemos dar dois ou três passos à frente.
Neste sentido, o nosso conceito de práxis deve apropriar-se dessa reflexão na nossa atividade cotidiana e perder-se nela, pois somente assim poderemos voar para o futuro como um bando de pássaros e não como folhas soltas no ar. Precisamos entender que hoje vivemos num tempo em que os conceitos e o conhecimento quebraram distâncias. Se antes pertencíamos a uma "tribo", hoje somos parte da "tribo planetária”. Se antes amávamos a natureza, hoje nos consideramos totalmente parte dela. Se só existe uma raça, hoje pertencemos à raça humana. Se agora eu estou aqui, daqui a pouco estarei na casa de cada um, em qualquer cidade e em qualquer país, via rede mundial de relacionamentos multifacetada. Portanto, em cada gesto, em cada ser humano, já é possível ver a humanidade inteira, como um jogo de espelhos que reflete diferentes tempos e identidades inter-relacionadas: um verdadeiro caleidoscópio humano que pode servir para construir uma nova prática transformadora, mas que também pode “domesticar” aquelas mentes que se bastam a si mesmas, hipnotizadas pelas novas tecnologias.
Portanto, mais uma vez, precisamos recuperar aquela emoção que nos motivou a construir os nossos “moinhos” e a realizar as nossas fantasias para tentar revelar este novo momento da história humana. Se o conhecimento, a criatividade e a ousadia já nos pertenceram no passado, agora podemos resgatá-los.  Quem sabe assim, poderemos conquistar a primavera remodelada dos nossos sonhos. Mas, tenhamos muita serenidade para definir o que fazer aqui e agora, com a máxima consciência prática/humana/crítica/histórica/sensível que adquirimos na nossa rica e contraditória experiência de vida.
Florianópolis, abril de 2010.
        Ricardo Marques Almeida

A Liberdade é Azul (uma sinfonia inacabada)

Publicado por Ricardo Almeida

“A Liberdade é Azul” (Bleu - 1993) é a primeira parte de uma trilogia filmada pelo diretor polonês Krysztof Kieslowski, que se completa com “A Igualdade é Branca” (Blanc - 1994) e “A Fraternidade é Vermelha” (Rouge - 1994). O filme reflete o pensamento inicial do diretor em busca de um humanismo solidário e fala das dificuldades existenciais e subjetivas encontradas para a sua realização. Toda sensibilidade do cineasta está revelada no texto, nos sons e no enquadramento das cenas iniciais e se manifesta ao longo de quase todo filme.

A reflexão mais profunda se dá através de personagens que se cruzam, mas principalmente na tragédia que ocorre na vida de Julie Vignon (Juliette Binoche) após a morte do marido - um maestro e conhecido compositor europeu - e da filha, num acidente de carro. Ao ficar sozinha, ela sente que sua vida perdeu o significado, passando a viver um tipo de liberdade egoísta e totalmente esvaziada de conteúdo.

As perdas são representadas por uma casa vazia e pela envolvente música composta pelo marido morto que ecoa na cabeça de Julie, sem deixá-la viver em paz. É que, num primeiro momento, ela ainda não percebia que existia uma relação intrínseca entre a sinfonia inacabada e a sua vida, também interrompida pelo trauma.

Na busca de um sentido para a vida, ela tenta ignorar o passado, mas aos poucos vai descobrindo que está cada vez mais presa a ele. Ou seja, por mais que ela tente fugir daquela realidade dolorida, sempre surgem sombras que a chamam para “conversar” com a sua verdadeira experiência de vida.

Com o passar do tempo e com a revelação de novos fatos, ela vai descobrindo que não deve mais fugir e que somente o diálogo com as suas lembranças seria capaz de concluir aquelas duas obras incompletas: a sinfonia inacabada e a sua própria vida. Aos poucos há uma mudança na sua postura e ela começa uma nova busca pela harmonia com aquela composição, e isso passa a ser fundamental para o resgate dos seus melhores sentimentos e a trazem de volta para a realidade. Ao permitir a existência de fortes laços com outras pessoas, ela consegue sentir novamente o amor e a amizade, e o passado que tanto assombrava seus pensamentos passa a ser o elo de interação com a possibilidade de uma nova vida.

As reflexões sobre a igualdade e a fraternidade aparecem silenciosamente neste filme e depois são aprofundadas nas outras partes da trilogia. Na obra completa (nas três cores) Kieslowski nos diz que a liberdade é vazia se não vier junto com a igualdade e a fraternidade. E vice versa. Ou seja, se alguém não consegue dialogar com outras pessoas é porque ela não aprendeu a compartilhar reflexões e os seus sonhos. Na prática estaria realizando “o nada”! Ou seja, o problema é quando não reconhecemos o que aprendemos e não compartilhamos os nossos afetos.

Assista ao trailer do filme:

http://www.youtube.com/watch?v=jmQ88PWzvR0

As invasões bárbaras - Por uma vida digna!

Escrito por Ricardo Almeida


Afinal, vivemos ou não num grande hospital? Essa é uma das perguntas que devemos fazer ao assistir este belo filme canadense. Se é verdade que as pessoas só se preocupam em prolongar a vida o máximo possível, sem dar um sentido digno para ela, essa metáfora do diretor Denys Arcand tem um alto grau de importância e de veracidade. Segundo essa visão, a grande maioria das pessoas já aceitou que a vida não lhes pertence mais e estamos delegando a responsabilidade sobre ela para outras pessoas. Hoje, para obtermos “saúde” (sic) e “felicidade” (sic), é só procurar a ajuda de médicos, psicólogos, psiquiatras, gurus, personal trainers, enfermeiras, políticos profissionais etc. etc. etc.

Ao mesmo tempo, o filme faz diversas referências às nossas atuais ameaças externas (inclusive no título) . Um exemplo foi o ataque às Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001, que significou um revide aos norte americanos, mas também uma demonstração clara e objetiva do novo tipo de barbárie que a civilização está vivenciando. Tudo com um certo sabor de vingança e com um grande apelo e prazer midiático. O mesmo vale para os ataques de Bush ao Iraque e para os massacres ocorridos durante a revolução chinesa de Mao Tsé Tung.

Segundo Arcand, a morte banal de milhares de civis e inocentes tem sido a tônica do mundo contemporâneo, assim como também a morte de pessoas desiludidas com a vida. Mas, propositalmente, o filme nos convence que o século XX, com todos os conflitos, contradições e tecnologias mortais (campos de concentração, câmara de gás, napalm, fuzilamentos, bomba atômica etc.) não foi o período mais violento do processo "civilizatório", pois na época das grandes navegações e descobrimentos, na nossa América do Sul e na do Norte, foram massacrados mais de 200 milhões de índios. Com um detalhe: "foram mortos a machadadas!" Vejo isso como um primeiro alento do diretor.

No geral, essa reflexão contextualizada e complexa serve como pano de fundo do filme, amarrada por um belo roteiro minuciosamente construído. Mas isso, dizem alguns, fica bastante submerso na trama, já que Arcand resolveu destacar simbolicamente o maior tabu da sociedade ocidental (lembrem que o tabu da sexualidade a nossa geração já conseguiu derrubar), que é a reflexão sobre a possibilidade de uma morte digna. Ou melhor: de ter uma vida digna... Quer dizer, daquilo que você quiser, desde que não seja solitário(a) num quarto frio deste "grande hospital". 
Eu sei que falar em morte aqui no ocidente é quase uma heresia, pois a maioria das pessoas prefere se iludir que irá viver para sempre. Sei também que a sociedade de consumo trata o ser humano como “uma coisa”, e que muitas "coisas" apenas possuem um valor monetário e de troca, como se fôssemos um depósito de informações, sem nenhum conhecimento e/ou sabedoria. As maioria das pessoas está vendo a vida apenas como um prazer infinito, sem sofrimentos! E nós embarcamos juntos dentro deste sofisticado furacão midiático e social.

       No filme competem harmonicamente essas duas visões simultâneas do diretor: a psicológica (individual) e a externa (contexto social), representada pelas ameaças que não dependem somente dos nossos desejos. Por exemplo, o personagem central  é um professor e intelectual de esquerda que está morrendo juntamente com o sistema de ideias que ele representa. De outro lado, está o seu filho yupie, que quer comprar tudo e todos (diretora do hospital¸ dirigente sindical, a garota usuária de drogas e alguns ex-alunos) para proporcionar uma morte mais tranquila para o pai. Só que nesse afã, ele acaba contratando uma jovem usuária de heroína para aplicar injeções da droga no pai, e assim, diminuir o seu sofrimento. Vê-se que o plano dá certo, mas, ironicamente, nessa convivência eles conseguem revisar os seus valores e ela descobre um significado mais digno para vida. Aliás, no final (dá para contar o final?) essa personagem, já se recuperando da dependência, vai viver numa casa herdada do professor, onde estão os seus livros (História e Utopia, O Arquipélago de Gulag e outros que eu ainda não conheço...), o que avaliza essa minha conclusão parcial. E por isso, talvez, esse trabalho tenha lhe rendido o prêmio de melhor atriz em Cannes, já que, para mim, todos estavam maravilhosos e convincentes.
Esse filme é fatalista e desesperançoso? Acho que a resposta se encontra no rumo que tomaram as duas jovens personagens femininas do filme. A primeira já foi citada, e a outra vem da filha do professor, que se revela quando esta diz via internet: “sou uma mulher feliz¸ achei o meu lugar. Não sei como você fez, mas conseguiu me transmitir o seu apetite pela vida“. A frase me pareceu como um sopro de esperança do diretor, pois ela foi dita num veleiro e tendo um imenso oceano ao fundo. Vi como uma analogia ao nosso futuro, cheio de dúvidas e de incertezas. Ainda mais que o diretor dedicou o filme à sua filha.

          Embora Invasões Bárbaras proponha diversas reflexões importantes, o momento que mais chama a atenção do grande público é quando o personagem terminal diz tranquilamente para os seus velhos amigos e amigas: “Eu tive muito prazer em viver essa modesta vida na compainha de vocês, queridos amigos. É o sorriso de vocês que vou levar comigo”. Ou seja, ele consegue resgatar as suas principais relações e ter uma despedida digna do filho e dos(as) amigos(as), superando a dificuldade em abraçar e ouvir diferentes pontos de vista. Desse modo, a sua morte também não foi ocultada de ninguém.
  Dizem que quando a gente está à beira da morte, passa um filme na nossa cabeça. E quando um sistema de ideias morre, não deveria acontecer o mesmo? Acho que isso dependeria da revisão e da destruição dos dogmas e tabus que nos imobilizam, assim como da mudança de um ponto de vista, do propósito e dos valores.

          Veja o trailer do filme no link:
NOS BASTIDORES: O diretor disse em entrevista que a civilização está declinando, pois "o mundo de hoje é caracterizado por uma burrice total”. Nesse ponto eu não concordo. Acho que ele esqueceu que na Idade Média, na escravidão do século 19 e em outras épocas obscuras, a humanidade (como um todo) não tinha tanta informação e nunca esteve tão democratizada como hoje. Para mim, o que acontece é que não sabemos lidar com tanta INFORMAÇÃO e não entendemos quase nada sobre o papel do Estado, dos governos e da sociedade civil. Assim, nos sentimos ORFÃOS e permanecemos PERPLEXOS e confusos diante desta nova realidade. Mas concordo que o conhecimento cientificista nos armou muitas armadilhas dogmáticas (“ismos”) e acabamos substituíndo o “egoísta divino” pelo “eu egoísta” e depois houve a volta do “nosso egoísta divino”. Somente com a MORTE dos PARADIGMAS que nortearam a nossa geração é que fomos capazes de ver a vida como uma "grande possibilidade" e não mais como uma "certeza". O problema é que alguns "manuais" e discursos ainda são deterministas e não revelam as contradições deste mundo CAÓRDICO.
Uma observação: Quem quiser aprofundar mais sobre a dignidade e a superficialidade da vida contemporânea pode assistir o fraquinho Declínio do Império Americano, do mesmo diretor, para identificar alguns prazeres egoístas da sociedade moderna ocidental.

Um olhar...

Fotografias e montagem de Ricardo Almeida

Forrest Gump, as caixas de bombons e a nossa história



Forrest Gump – O Contador de Histórias, do diretor norte americano Robert Zemeckis, é uma comédia super dramática. Trata-se de uma das melhores reflexões contraditórias e modernas sobre a vida humana. O diretor se utiliza da ironia para revelar a existência de um olhar voltado apenas para o presente, para os chamados prazeres privados, que deixam a construção do futuro para "os outros", num mundo bastante dominado pela idolatria, pelo consumismo, pela alienação e pela reprodução.


O personagem principal, Forrest Gump, é uma amável pessoa que vive intensamente sem entender quase nada do que se passa à sua frente. Mesmo assim, ele se torna uma importante testemunha dos maiores acontecimentos da história norte-americana, pois isso não dependia do seu grau de discernimento, capacidade intelectual ou ideologia. Seu pensamento estava voltado apenas para satisfazer a vontade dos outros. Mesmo assim, o filme nos mostra que alguém pode entrar para a história sem entender nada do que se passou. Ou seja, que basta você estar presente "no momento certo" e “na hora certa” para ser lembrado. O importante é manter a curiosidade e o atrevimento no momento em que "as coisas" estão acontecendo. Claro, se tudo for registrado pela lente de um fotógrafo, um blogueiros ou um jornalista de plantão.

Nesta nossa sociedade dominada pela mídia e pela tecnologia é muito comum a verdade ser substituída pelas aparências e pelas intenções. Fica muito difícil identificar o verdadeiro conteúdo das interações humanas. Quer ver um bom exemplo? Se um grupo quer revolucionar os costumes, construir uma sociedade livre e democrática, mais fraterna, socialista, ou seja lá o que for... ou se quiser resolver tudo “na porrada”, num golpe de mídia, a maioria das pessoas está pouco se importando com o método utilizado, pois há uma verdadeira banalização "das coisas". Assim, tudo se confunde, se embaralha, como se fossem a mesma “coisa”. Somente olhando bem de perto, ouvindo e sentindo as pessoas, é que se pode ver as diferenças.

 

Na ficção, o "soldado Gump" achava que era muito fácil servir o exército, pois bastava "fazer a cama direito, estar sempre em pé e responder todas as perguntas dizendo: "sim, sargento". Na vida real também vemos pessoas assim: repetindo o que os outros dizem, decorando "chavões", adotando uma lógica rígida e muitas vezes "sem a mínima reflexão", apenas para satisfazer os seus prazeres pessoais. Mas, voltemos à ficção!!!
A mãe de Forrest foi fundamental na sua formação e relação com a vida. O nome dele, por exemplo, foi uma homenagem a um antepassado que fez parte da história norte-americana. Mas tinha um detalhe: esse outro Forrest era líder da Ku Klux Klan. Ela sempre repetia uma frase para Forrest: "A vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar". No entanto, Forrest interpretava (?) que ninguém poderia imaginar um futuro possível e, por isso, não fazia reflexões sobre o futuro e a sua vida. Assim, ele acabou se tornando refém dos acontecimentos que surgiram à sua frente. No final do filme, ele entrega para o filho um livro que herdou da sua mãe... Claro, sem nenhuma reflexão! Dá para interpretar esse simples gesto como aquele tipo de conhecimento (verdade ou não) que repassamos quase que inconscientemente para as novas gerações.
 
Portanto, de uma maneira muito divertida, o Contador de Histórias nos faz enxergar o mundo com os olhos desarmados e, ao mesmo tempo, a responsabilidade que temos ao tentar desvendar a complexidade do mundo real. Enfim, o filme consegue contextualizar uma experiência alienada e mostrar a importância daquelas nossas velhas reflexões: "Quem somos? De onde viemos? Onde estamos? Para onde vamos? Esse é um drama nosso, não das pessoas que preferem se alienar dos acontecimento.

Veja o trailer do filme no link:

O Tigre e o Dragão, a verdadeira habilidade

Publicado por Ricardo Almeida


O belo filme O Tigre e o Dragão, do diretor Ang Lee, é uma fábula oriental feita com extremo prazer estético e com muita sabedoria nas palavras e também nos gestos. Não vou fazer uma análise completa do filme, pois ele é cheio de detalhes e de ensinamentos que dariam para escrever um livro com muitas páginas. Aqui, quero apenas destacar alguns momentos que me marcaram profundamente e que tento assimilar visceralmente para a minha vida. Como vou rever o filme diversas vezes, sei que farei outras reflexões tão importantes como estas. Vejam quais são as minhas preferidas:

1) O gesto é bem mais importante do que as palavras: num certo momento do filme, quando estão tentando identificar a pessoa que robou a valiosa espada do prefeito, a mestre deixa cair intencionalmente uma xícara e a pequena aprendiz rapidamente a segura no ar. Neste simples gesto fica claro que a menina possuía todas as habilidades daquele ladrão fugitivo. As palavras dela não correspondiam a realidade, e o gesto (teste aplicado pela mestre) revelou o que realmente se escondia por trás das palavras;

2) A diferença entre a sabedoria e o conhecimento: Quando a Raposa Jade (Fox - a babá) diz que ela não sabia ler e que todo o seu ensinamento veio através de fragmentos das leituras feitas pela menina aprendiz, ela revela o verdadeiro poder do conhecimento e do não conhecimento. Ou seja, se alguém aprende somente através da leitura que os outros fazem, essa sua "leitura" fica muito reduzida... E, se essa leitura foi feita por um aprendiz, pior ainda... Essas pessoas precisam ter a humildade de reconhecer o fato de que não estudaram com profundidade as lições da vida... Senão, elas acabam se tornando pessoas "embrutecidas" , "donas da verdade" e até "raivosas". No filme, o conhecimento é tratado de forma diferente da sabedoria... assim, com deve ser!!! Enquanto aquele tenta provar a veracidade das "coisas", a sabedoria tenta construir um processo pedagógico... ou seja, a sabedoria questiona quase tudo, inclusive a si mesma!


3) A verdadeira habilidade: Uma das cenas mais hilárias do filme é quando a menina aprendiz é desafiada por vários querreiros que se auto-intitulam "grandes", "fortes", "velozes", "imortais" (adjetivos inventados por mim, pois não revi o filme para escrever este texto - depois eu revejo e atualizo). Primeiro, ela fica em profundo silêncio e depois, com poucos "golpes", ela derruba quase todos... Muitos fogem!!! Neste momento, ela já estava observando o silêncio e adquirindo a sua verdadeira habilidade: aquela que nasce sem rótulos e sem esforço!


4) O uso da força e a adversidade: Nas cenas finais o mestre e a menina aprendiz travam uma luta agarrados em enormes bambus plantados... Como se os bambus representassem a necessidade da gente ser mais flexível diante de uma adversidade... A sabedoria oriental nos diz que os bambus são mais fortes do que o ferro. Enquanto o ferro fica torto ao se dobrar, o bambu quase sempre volta a sua posição original. Mesmo após os golpes, as tormentas e as chuvas.

5) O mêdo e a ousadia: Um amigo meu me disse que a menina se suicida naquele voo final... Eu prefiro dizer que ela aprende a "ousar na vida", e que essa cena faz parte de mais uma licença poética do autor. A compreensão dessa cena é muito importante para entender o filme, pois ela contém o seu maior significado: a ousadia de voar como um pássaro, e não como uma pluma.

Portanto, acho que trata-se de um filme para se ver com um certo distanciamento estético-crítico. Aquele que todo aprendiz deve adotar para perceber a profundeza "das coisas".

Inventa um cais...

Fotografia de Ricardo Almeida