O espelho, o reflexo e a práxis

“É que narciso acha feio o que não é espelho”
Caetano Veloso
Historiadores dizem que os colonizadores presenteavam os nativos com um espelho quando pretendiam “domesticá-los”. Esse simples gesto continha dois significados contraditórios: por um lado, os “conquistadores” conseguiam alcançar os seus objetivos, e por outro, esses mesmos nativos conseguiam enxergar pela primeira vez os seus próprios rostos e os seus belos ornamentos. Portanto, também era um exercício espontâneo de reconhecimento da existência de si mesmo, como parte de uma identidade coletiva e cultural. Os espelhos também foram utilizados por diversos escritores como símbolo de algo que permite a revelação ou a descoberta de uma subjetividade, antes oculta. Já os antropólogos dizem que uma cultura somente se reconhece a partir de outra, de uma visão crítica e distanciada de si mesma, que toda cultura precisa de uma visão “de fora” para se ver plenamente. Por isso, é muito importante exercitar esse olhar de fora, para notar que os nossos hábitos, gestos e reações afetivas não são tão naturais assim, mas que são frutos de um processo histórico, coletivo, consciente e também inconsciente.
Ainda hoje é comum encontrarmos pessoas que carregam consigo essa herança colonial que faz com que queiram “colonizar” o Outro, partindo do princípio de que a sua cultura está mais correta, e que a do Outro contém “desvios”, “erros” etc. No entanto, ao mesmo tempo, começamos a entender e a aceitar que somos uma “civilização” só, com inúmeras culturas diferenciadas e que é preciso aprender a conviver com o Outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, das suas diferenças. Finalmente, estamos considerando a subjetividade de cada uma das culturas e a relação que os indivíduos estabelecem entre si, e também a considerá-las em relação às instituições, compreendendo as diferentes singularidades políticas, econômicas, sociais e culturais.
Na teoria, já assimilamos que somos assim, justamente pela complexidade subjetivo­-objetiva que adquirimos e pelas características da própria sociedade contemporânea, onde mantemos laços e relações reflexivas permanentes com outras culturas, em maior ou menor grau. Analisando desse modo, aos poucos vamos diminuindo consideravelmente os riscos de uma apologia a um dos lados, e evitando aquele velho e conhecido pensamento maniqueísta e/ou chauvinista do “nós versus vocês”. Dentro dessa ótica é que se apresenta o maior desafio político: repensar a nossa práxis e as relações que as nossas organizações (empresas, sindicatos, associações de bairro, centros acadêmicos, prefeituras e conselhos) mantêm entre si e com os seus países, objetivando um pensamento além fronteiras, sem perder a noção de identidade e de singularidade política e cultural de cada uma.
Neste processo de reflexão e de construção individual e coletiva, precisamos estar preparados para rir e para ouvir lamentos. Pessoas céticas tentarão nos desanimar de prosseguir nesta nossa investida. Muitos daqueles que deviam ensinar a ver e a transformar a realidade irão reproduzir suas reflexões acadêmicas, sem o mínimo de comprometimento prático. Precisamos entender que alguns pensadores irão preferir a confortável postura de críticos e de observadores do que “botar a mão na massa” e tentar transformar essa complexa realidade.
Durante os períodos de crise de paradigmas, a grande maioria das pessoas ignora que as mudanças tecnológicas também acabam destruindo conceitos e que é sempre preciso repensar essas mudanças na prática e na teoria. Foi assim no início da Idade Moderna, quando Cervantes e Shakespeare inventaram o humano ao nos propor uma aventura ética e coletiva. Foi assim na Primeira Revolução Industrial, quando Kant, Hegel, Feuerbach, Marx e Engels refletiram profundamente sobre o conhecimento e a condição humana, sob as amarras da nova sociedade que surgia. Também foi assim na Segunda Revolução Industrial, quando Freud, Jung, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Gramsci, Eric Fromm, W. Reich, H. Marcuse, R.D.Lang, Agnes Heller, Hannah Arendt e, mais recentemente, Paulo Freire mergulharam profundamente no inconsciente individual e coletivo para resgatar o papel do indivíduo oprimido na sociedade totalmente industrializada. Mesmo assim, muitas pessoas ainda ignoram que em quase todo o século 20, e principalmente a partir dos anos 70, a humanidade vivenciou diversas lutas por liberdades individuais e, definitivamente, o ser humano já não é o mesmo que existia tempos atrás. Nos últimos 500 anos, tivemos muitas lutas, buscas e conflitos. Milhões de nativos do continente americano foram massacrados a machadadas pelos colonizadores europeus, outros milhões de africanos foram arrancados de suas coletividades para morrerem como escravos nas nações além mar, duas grandes guerras mundiais destruíram várias cidades e acabaram com a vida de milhões de soldados e de civis inocentes. Apesar de tudo, ainda há quem afirme que “antes era bem melhor do que hoje”. Percebe-se que muitos ainda não entenderam o mal estar da cultura, e que ainda lhes falta muita reflexão e muita sensibilidade prática.
Neste longo período da história humana, aprendemos que o futuro não existe, mas que é nele que iremos viver. Concordo que a realidade se tornou muito mais complexa, mas também concordo que as pessoas de hoje possuem muito mais informações e conhecimentos do que antes. Se muitas daquelas nossas ilusões deterministas caíram por terra, é porque as nossas certezas já não existiam mais. Sabemos que a nossa imaginação ainda não chegou ao poder, mas também sabemos que conseguimos significativos avanços humanitários e democráticos. Apesar dos tropeços, erros, desistências e desilusões, uma dura guerra de posições e de movimentos continua existindo e a luta de alguns ainda permanece permanente. Se demos muitos passos atrás, agora já podemos dar dois ou três passos à frente.
Neste sentido, o nosso conceito de práxis deve apropriar-se dessa reflexão na nossa atividade cotidiana e perder-se nela, pois somente assim poderemos voar para o futuro como um bando de pássaros e não como folhas soltas no ar. Precisamos entender que hoje vivemos num tempo em que os conceitos e o conhecimento quebraram distâncias. Se antes pertencíamos a uma "tribo", hoje somos parte da "tribo planetária”. Se antes amávamos a natureza, hoje nos consideramos totalmente parte dela. Se só existe uma raça, hoje pertencemos à raça humana. Se agora eu estou aqui, daqui a pouco estarei na casa de cada um, em qualquer cidade e em qualquer país, via rede mundial de relacionamentos multifacetada. Portanto, em cada gesto, em cada ser humano, já é possível ver a humanidade inteira, como um jogo de espelhos que reflete diferentes tempos e identidades inter-relacionadas: um verdadeiro caleidoscópio humano que pode servir para construir uma nova prática transformadora, mas que também pode “domesticar” aquelas mentes que se bastam a si mesmas, hipnotizadas pelas novas tecnologias.
Portanto, mais uma vez, precisamos recuperar aquela emoção que nos motivou a construir os nossos “moinhos” e a realizar as nossas fantasias para tentar revelar este novo momento da história humana. Se o conhecimento, a criatividade e a ousadia já nos pertenceram no passado, agora podemos resgatá-los.  Quem sabe assim, poderemos conquistar a primavera remodelada dos nossos sonhos. Mas, tenhamos muita serenidade para definir o que fazer aqui e agora, com a máxima consciência prática/humana/crítica/histórica/sensível que adquirimos na nossa rica e contraditória experiência de vida.
Florianópolis, abril de 2010.
        Ricardo Marques Almeida

2 comentários:

  1. A frase não é de Caetano e sim de Paulo Vanzolin.
    grato
    joaquim

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  2. Paulo Vanzolin é autor de Ronda e Caetano de Sampa... Não é isso, Joaquim?

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