Entra sem bater na porta...

“Não sois máquinas, homens é que sois” - Charles Chaplin

Assim como as pessoas, as organizações passam por diferentes estágios até chegarem à sua maturidade. Na primeira infância, elas preocupam-se com os seus interesses individuais, corporativos, no caso das organizações, voltadas para dentro. Na sequência, experimentam a fase das descobertas técnicas, artísticas e científicas, o chamado mundo das habilidades e, somente se conseguirem superar essas duas fases anteriores, acessam o estágio do conhecimento e da criatividade compartilhada.

É comum as pessoas e as organizações permanecerem por muito tempo numa das duas primeiras fases, pois a terceira requer um forte domínio de técnicas de gestão complexas, além de exigir um desejo radical de compartilhamento de conhecimento e de sabedoria, com a sublimação de impulsos infantis (egoísmo e “dono da verdade”) e uma saudável abertura para o novo: o desconhecido.

Na segunda fase, as habilidades técnicas, científicas e/ou artísticas individuais são aprendidas e, quase automaticamente, servirão de base para superá-la. No entanto, a técnica é como um remédio que vicia. Todo sujeito que está recém se iniciando nela, no afã de aplicá-la, acaba sempre substituindo a leitura sensível da realidade pela obediência cega aos procedimentos aprendidos. Assim, a complexidade da realidade passa a não ser compreendida como ciência, no seu contraditório, mas como técnica, induzindo a avaliações precipitadas, limitadas e distorcidas, caindo nas armadilhas do saber formal e burocrático.

Por seu lado, o processo de amadurecimento exige algumas superações e até rupturas, pois ele requer a destruição das amarras forjadas na velha cultura hierárquica e/ou de “castas”, baseada em cargos e funções, originárias dos exércitos, das igrejas e dos governos tiranos, e também a assimilação de uma nova cultura voltada para projetos reais (gestão dos processos e dos resultados), a partir da convivência com as demais pessoas envolvidas.

Numa organização madura e democrática, a valorização do talento individual e coletivo será sempre um fator fundamental da sua política, pois nela as pessoas serão tratadas como sujeitos e não como “instrumentos” de uma ação pretendida. Ou melhor, como uma vida em gestação, essas organizações não estarão preocupadas em apenas apoiar ações de curto prazo. Suas lideranças possuem paciência para escutar o contraditório e muita perseverança para crescer com qualidade e em quantidade. No caso dos governos é mais complicado ainda, pois esse amadurecimento envolverá os servidores públicos de carreira. Sem eles, a execução e os resultados esperados jamais sairão do papel.

Portanto, a gestão voltada para projetos reais e a busca por melhores resultados é muito mais complexa do que sonhar, conseguir financiamentos e/ou assinar contratos. Ela requer que se adote uma visão sistêmica dos processos, e depois, que se identifique um propósito claro (pra quê estamos nos organizando?) e alguns valores centrais para serem pactuados e trabalhados coletivamente. Somente assim as pessoas entrarão sem a necessidade de bater na porta.

Sartori, Forrest Gump e as nossas façanhas



          Forrest Gump – O Contador de Histórias é uma comédia dramática que proporciona algumas reflexões contraditórias sobre a história política dos EUA na segunda metade do século 20. No filme, o diretor Robert Zemeckis revela a existência de um olhar voltado apenas para o presente (imediato), para os chamados prazeres individuais, que deixam a construção do futuro para os “outros", num mundo dominado pelo egoísmo, pela alienação, pelos selfies e pela reprodução dos hábitos de celebridades.
 

          Apesar de ser uma personagem amável, Forrest vivia sem entender o que se passava à sua volta. No entanto, mesmo atrapalhado, ele acabou se tornando uma testemunha da história política norte-americana, pois estava presente "no momento certo" e “na hora certa”, quando fatos importantes aconteciam. Assim, na sua ingênua curiosidade, ele acabou fazendo parte da história, pois sua participação (sic) foi registrada pelas lentes dos fotógrafos e pelos jornalistas de plantão.
 

          Nas poucas vezes em que falava o "soldado Gump" dizia que era fácil servir ao exército, pois bastava "fazer a cama direitinho”, “estar sempre em pé” e “responder todas as perguntas” dizendo: "Sim, senhor!". Na vida real também existem pessoas que repetem tudo o que os apresentadores de rádio e de televisão dizem, sendo que algumas decoram os "chavões" da política e adotam lógicas excludentes (desde que não sejam elas as excluídas). 

         Na maioria das vezes, sem a mínima noção de realidade, essas pessoas vivem apenas para satisfazer os seus prazeres imediatos, pessoais e egoístas.
A mãe de Forrest deu conselhos fundamentais para ele. Ela costumava repetir: "A vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar". E Forrest interpretava (?) que ninguém poderia imaginar um futuro possível e que, por isso mesmo, não adiantava fazer reflexões sobre as possibilidades e nem sobre o destino que estava a sua frente. O seu nome, por exemplo, foi uma homenagem a um antepassado da família que fez parte da história norte-americana: era uma liderança da Ku Klux Klan.
 

         De uma maneira trágica e divertida, o Contador de Histórias nos faz enxergar o mundo com os olhos desarmados e, ao mesmo tempo, com uma enorme vontade de desvendar os obstáculos e a complexidade da vida contemporânea.  Uma vida caracterizada pela abundância de informações (televisão e internet), e também pelo surgimento de redes caórdicas de relacionamentos, pelo crescimento de valores egoístas e individuais, e pela triste proliferação de grupos de pessoas céticas, dispersas e solitárias.
 

           Depois de assistir ao filme se consegue pensar melhor sobre as nossas escolhas, sobre a relação que temos com a família, com os amigos, com a história e com a política. No entanto, muitas pessoas preferem seguir a vida sem se comprometer com nada, e por isso mesmo não medem as consequências dos seus atos. Outras, idealistas, apenas fazem os seus protestos e morrem.
 

           Numa sociedade dominada pelas mídias e pelas novas tecnologias estamos perplexos assistindo muitas verdades serem substituídas pelas aparências e pelas intenções do marketing, como se tudo fosse uma propaganda ou um produto a ser consumido. Nessa confusão midiática ficou muito difícil identificar a verdadeira intenção das pessoas e os valores que orientam as relações presenciais e/ou virtuais. Algumas pessoas até dizem querer mudar a vida, mas no fundo querem apenas manter os seus privilégios (status e cargos). Outras querem acabar com as diferenças na porrada, impondo a sua verdade e não aceitando o diálogo franco e maduro.
 

             Elas estão pouco se importando com o método utilizado e distorcem o próprio sentido de cidadania e de amizade, pois agem como se não tivessem “compromissos” e “responsabilidades”. A palavra, o gesto e a intenção acabam se tornando “coisas” que perdem o seu sentido prático e sensível. Querem relações frias e impessoais, ou como se tudo fosse um verdadeiro “jogo de azar”. Mas, ao olharmos bem de perto, caso a caso, ouvindo e sentindo cada gesto, é que conseguimos perceber as diferenças, os resultados e também (é claro!) as confusões.
     

            E o que o Sartori tem a ver com tudo isso? É verdade que ele adora falar dos conselhos que recebeu da sua mãe, que nunca sabe o que vai acontecer no futuro e que possui muitos seguidores... O que muita gente não percebe é que ele quer transformar as pessoas em verdadeiros "Forrest Gumps". Ou seja, ele está tentando entrar para a história como um governador “Contador de histórias” e que segue ocultando as forças conservadoras e reacionárias que o apoiam desde a campanha política.
 

              Quem acha que o governador é um Forrest Gump está muito enganado. Na verdade, ele faz parte de uma campanha de marketing muito bem pensada, que quer privatizar o Estado e vender o máximo do patrimônio público. É bom lembrar que Sartori era líder do Governo Britto na Assembleia Legislativa, e foi responsável pela péssima renegociação da dívida do estado com a União, que hoje ele tanto reclama. À época ele também apoiou a privatizações de empresas públicas, os planos de demissões voluntárias e também aprovou aquele famigerado modelo de pedágios.  Agora, como governador, ele já tomou várias medidas “duras” que impactam na vida dos gaúchos e das gaúchas. Vejam algumas delas:

- Acabou com a Secretaria de Políticas para as Mulheres e criou uma secretaria especial para a sua esposa;
 

- Usou o helicóptero do Estado para compromissos particulares;
 

- Aprovou um reajuste de 45,9% para o seu salário (depois voltou atrás, em função da pressão popular), de 64% para seus secretários de governo e de 26,3% para os deputados estaduais;
 

- Atrasou e parcelou o salário dos servidores públicos, e responde na justiça por esse ato;
 

- Diminuiu o policiamento nas ruas em função do corte de horas extras dos policiais;
 

- Deixou de repassar recursos para hospitais e, com isso, os hospitais reduziram leitos, demitiram funcionários e baixaram a qualidade dos atendimentos;
 

- Suspendeu o pagamento dos fornecedores e dos prestadores de serviços, gerando desemprego em empresas terceirizadas;
 

- Encaminhou projeto de extinção da Fundação Zoobotânica e assim pretende desmantelar uma instituição séria, que contribui com conhecimentos essenciais para a proteção ambiental do estado;
 

- Assinou um decreto de regulamentação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Bioma Pampa com a nítida intenção de facilitar o agronegócio, aumentar as lavouras e acabar com os campos nativos remanescentes. Esse decreto está sendo contestado pelo Ministério Público;
 

- Não conversa com a imprensa após o anúncio das suas medidas amargas;
 

- Indicou pessoas sem a mínima experiência para áreas estratégicas do Estado, como a Secretaria de Administração, de Turismo etc;
 

- Empregou parentes de secretários e de deputados, e indicou secretários de estado para o Conselho de Administração do Banrisul, das empresas estatais, para aumentar ainda mais a renda dos seus amigos;
 

- Quer aumentar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e de Serviços (ICMS) e, com isso, vai contribuir para aumentar o preço dos alimentos, dos combustíveis, da energia elétrica, da internet, e dos serviços em geral;
 

- Os deputados da base aliada aprovaram o projeto ironicamente chamado de “Lei Escola Melhor: Sociedade Melhor”, que abre a possibilidade de privatização do ensino público e tira a responsabilidade do Estado com a educação;
 

- Os seus deputados também aprovaram a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2016 e tudo indica que haverá um arrocho salarial, e todas as consequências que isso trás (greves e mais greves).

O governador disse que essas medidas representam apenas uma "sementinha" dentro das atitudes propostas para melhorar as condições financeiras do Estado, mas vemos que a população do Rio Grande do Sul já está começando a viver um novo pesadelo. A segurança pública está ameaçada, com um considerável aumento da criminalidade e dos assaltos, as escolas vivem momentos de incertezas e de manifestações diárias, milhares de pessoas estão ficando sem atendimento de saúde e alguns municípios suspenderam ou reduziram os atendimentos pelo SUS. As ameaças de atraso nos pagamentos e o parcelamento dos salários trouxe ainda mais insegurança para os servidores, que não conseguem planejar a vida de suas famílias.
 

          Seria cômico se não fosse trágico...  Vê-se que o Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade (PGQP), aplicado pela consultoria do empresário Jorge Gerdau, é um plano que trata as pessoas apenas como números e o patrimônio público conquistado pelos nossos pais e avós como bens totalmente descartáveis. No entanto, se os riograndeses recomeçarem a escrever a sua história a partir das organizações e das lutas sociais, e não ficarem apenas falando entre os seus e/ou criticando a figura caricatural do governador, essa camuflada estratégia política e midiática poderá ser desmascarada.
 

             Ainda bem que, contraditoriamente, Sartori conseguiu unificar diversos setores contra o seu governo, e uma grande mobilização promete continuar até não se sabe quando... Tudo vai depender do grau de consciência e de organização que os gaúchos e suas lideranças conseguirem alcançar.
 

         A vida ensina aos que lutam e sabemos que num futuro próximo, esses grupos econômicos que apóiam Sartori, assim como os seus silenciosos seguidores, terão que se explicar pelo novo sucateamento do Rio Grande. Pior é que não se trata de um filme e muito menos de uma peça de ficção, e que, portanto, todos nós seremos responsabilizados pelas nossas escolhas, silêncios e atitudes. É que as nossas vidas estão em jogo, assim como as vidas de nossos amigos, filhos, netos e vizinhos. É sempre bom lembrar que um povo que não tem virtude (e que não se organiza) acaba por ser escravo de políticos inescrupulosos.

Ricardo Almeida é consultor em gestão de projetos com uso de tecnologia da informação e comunicação.

Marina morena, você se pintou?


Após meses de campanha, as pesquisas eleitorais apontavam uma vitória de Dilma no primeiro turno, e os jornais afirmavam que a candidatura de Aécio Neves, segundo colocado nas pesquisas, não conseguia responder às denúncias de envolvimento com o tráfico de cocaína em Minas Gerais e da construção de um aeroporto nas terras de um parente seu e próximo a uma de suas propriedades rurais. Por outro lado, quase fora da disputa principal, Eduardo Campos não saía dos 9% e também já começava a ter que esclarecer o emprego da sua mãe no Tribunal de Contas da União, a indicação de um primo para o TCE, órgão fiscalizador das contas do estado, além do seu envolvimento no escândalo dos precatórios de Pernambuco. Era fácil constatar que a oposição brasileira estava colocada numa sinuca de bico, no meio de um cenário internacional conturbado, de intensas disputas por fontes de energia (Ucrânia, Gaza e  também, é claro, o nosso Pré-Sal). 

Neste complexo cenário, acontece um grave acidente aéreo com vítimas fatais, entre elas o candidato Eduardo Campos. No mesmo dia, bem antes da identificação dos corpos e muito antes dos funerais, a grande mídia (de uma forma orquestrada) começa a especular sobre uma possível candidatura de Marina Silva como substituta "natural" do candidato morto. Durante o velório, algumas pessoas chegaram a esboçar a sua alegria ao fato da alteração daquele quadro político. As manchetes dos principais jornais do país passaram a gritar em alto e bom som que “o mercado (financeiro = grifo meu) vê com bons olhos a candidatura de Marina Silva”.

Aproveitando este momento de comoção nacional, a vontade de levar a eleição para um segundo turno acabou se tornando o principal assunto das análises feitas por comentaristas especialmente convidados. Para a maioria deles, Aécio não herdaria os votos de Marina e do PSB, mas Marina receberia os votos de Aécio e de todo o anti-petismo, numa provável disputa com Dilma.  Enfim, faltando poucos dias para a eleição, todos os jornais começaram a mostrar dia após dia, hora após hora, uma Marina morena sendo pintada de conservadora, como se estivesse indo para a batalha final contra Dilma e o PT. Ela, muito sábia, diz apenas que segue "uma missão" acompanhada à distância por um exército de ávidos representantes do conservadorismo brasileiro, por alguns intelectuais e por jovens desencantados com a política real (sic).

Aquele fatídico 13 de agosto acabou mudando as peças do jogo político brasileiro e deu um novo fôlego para a oposição conservadora. As manchetes (e o conhecido Instituto Data Folha) insistem em dizer que tudo está nas mãos de Marina, mas não é bem assim... Além de enfrentar uma Dilma super bem preparada, com várias realizações no currículo, ela terá que demonstrar qualidades que nunca teve, já que a sua trajetória pessoal é bastante conturbada. Lembrem que ela já foi católica, namorou com o comunismo e se tornou uma missionária evangélica. Já se desfiliou do PT, quase destruiu o PV, não conseguiu apoio suficiente para registrar A Rede e teve que se abrigar nas asas do PSB para participar das eleições de 2014. Ao mesmo tempo diz que não sobe no palanque com Geraldo Alkmin (aliado do PSB em SP) e que não quer conversa com o setor do agronegócio. Afinal, quem é essa Marina Silva de 2014?

Sem desconsiderar outros méritos de Marina, é impossível não questionar uma campanha com tantas discordâncias internas. Com quem Marina manteria os seus compromissos caso acontecerem novas manifestações sindicais e/ou de rua? Marina governaria com o PT e os movimentos sociais organizados na oposição? Será que ela desistiria do cargo, como Getúlio ou como um Jânio Quadros de saias? 

Sinceramente, eu entendo que ela está representando mais uma daquelas soluções messiânicas, que nunca deram certo no Brasil. E que, portanto, é preciso ter muita calma para descascar mais este angu com caroço. As regras da política são bem mais complexas do que estampam essas manchetes dos jornais, e o nosso país ainda precisa construir um futuro democrático através de pactos orgânicos, estado por estado (reais, e não midiáticos), que considere as classes sociais e não apenas os partidos, que aprofunde a nossa revolução democrática e que também contribua para amadurecer a nossa cultura política individual, coletiva e republicana.

Não podemos analisar essa disputa como se fosse um simples jogo de futebol, pois são vários times que entraram em campo, com interesses diversos e até conflitantes. Além dessas questões já citadas, outras são bem conhecidas e controversas: 1) A filiação de Marina ao PSB é transitória e, segundo o acordo firmado, os militantes da Rede poderão se transferir para a legenda de origem sem o risco de qualquer tipo de sanção partidária; 2) Apesar de Marina ter se tornado uma referência nacional a Rede não tem uma base orgânica para dar sustentação a um governo de maioria; 3) Na eleição de 2010, ela fez 20% dos votos e, mesmo assim, não conseguiu eleger uma bancada para o PV (eu acredito que os seus votos foram para a bancada evangélica); 4) Ela terá que assumir compromissos com a oposição conservadora para obter uma maioria.

Quem acompanha a política brasileira de perto já esperava que a oposição conservadora iria se utilizar de agressividades e de baixarias, pois todos lembramos da bolinha de papel do Serra e das “cruzadas” religiosas que sempre partem lá de São Paulo. Mas eu quero alertar que, além disso, o Brasil está no epicentro das disputas internacionais por alimentos, energia e matéria-prima (BRICs, Pré-Sal e equilíbrio da América Latina). Portanto, o que estamos assistindo, com essa especulação da tragédia, é uma tentativa midiática de quem quer nos jogar numa aventura e também não possui um projeto claro para o país (e para a maioria do povo brasileiro).

Quais são as tuas revelações nas Redes Sociais?

Os antropólogos dizem que uma cultura somente se reconhece a partir de outra, de uma visão crítica e distanciada de si mesma. Ou seja, que ela precisa de uma visão “de fora”, para se reconhecer plenamente. Pois, eu acredito que a internet também colabora para acelerar essas revelações e esses reconhecimentos. Desde os anos 90, as velhas e as novas gerações estão interagindo na internet com suas diferentes postagens. Aliás, muitos perfis de pessoas que já morreram continuam “vivos” na rede. Qual será o destino disso tudo? Como essas publicações serão vistas daqui há 5, 10 ou 20 anos? Quantas postagens ainda iremos fazer?

As declarações de amor, as agressões, as contradições e os pedidos de desculpas ficarão à disposição de todos(as) na rede. Mesmo quando alguém falar mal do país e depois se arrepender, mesmo que essa pessoa pedir mil perdões e gritar que aqui é o melhor lugar do mundo para se viver, isso permanecerá como um rastro das suas antigas “opiniões”.

As redes sociais são ferramentas que comunicam, mas que também revelam as escolhas (prazeres, valores, opiniões  etc.) das pessoas e de nós mesmos. Tudo aquilo que antes ficava apenas no domínio da intimidade de cada um(a) está ficando cada vez mais exposto.

Através das postagens publicadas é possível identificar quais são as preferências de cada um(a). Por exemplo, quando alguém posta músicas, fotos dos filhos, do cachorrinho ou suas fotos sensuais, é possível identificar os seus valores privados. E quando essa mesma pessoa posta frases críticas aos governos de plantão ou faz a propaganda deste ou daquele candidato, ela está revelando os seus valores éticos, morais e políticos (valores públicos). Já as piadas e os conselhos espirituais são vontades expressas em busca de um eco ou de uma "alma gêmea".

Alguns gatinhos ainda se vêem como verdadeiros leões... Mas parece que esses espelhos já estão se quebrando, e revelam uma outra realidade, nem sempre agradável. Há quem pense o contrário! Enfim... QUAIS SÃO AS TUAS REVELAÇÕES NAS REDES SOCIAIS?

Quem estava pagando a minha ZH?


     Recebi uma Zero Hora de graça durante vários meses e fiquei curioso para saber se eles não tinham controle da entrega ou se estavam tentando me conquistar. Nesse período me ligaram N vezes para saber "por que eu havia cancelado a assinatura". Como eu sou muito tranquilo, resolvi testar a minha paciência e também a dos atendentes de telemarketing contratados pelo Grupo RBS. Vejam uma síntese desses diálogos:

- Qual foi o motivo do seu cancelamento?

- São vários motivos...

- O Sr. pode me citar alguns? Queremos lhe informar que esta conversa está sendo gravada...

- Maravilha! Tomara que alguém escute o que eu vou dizer... Em primeiro lugar, não estou de acordo com a linha editorial do jornal. Ele se tornou um jornal de opinião política e não de informações, como eu gostaria.

- Me explique melhor!

- Sim, eu costumo analisar as manchetes dos jornais, as matérias e a opinião de alguns dos seus colunistas... Nesta minha volta ao Rio Grande do Sul (já estou aqui há 4 anos), percebi que vocês incentivam a divisão dos gaúchos e fazem um jornalismo que não contextualiza a realidade... Isso tudo para vender mais jornais... E mais: neste momento dá para ver claramente que vocês estão em plena campanha política contra os governos legitimanente eleitos no estado e no país.

- Mas senhor, nós não fazemos política! Nós somos imparciais...

- Quando ZH só mostra um lado da moeda, e não mostra o contraditório, não entrevista as partes, não dá voz aos envolvidos, aquilo que deveria ser inform-ação acaba se transformando em opinião. Concordas? Ao analisar as matérias de ZH isso fica muito claro!!! E não te esquece que muitas pessoas só lêem as manchetes... Também vejo que a ZH faz uma permanente desmoralização das instituições públicas, dos partidos e de outras organizações populares... Por exemplo, não se lê uma notícia positiva sobre os maravilhosos programas implantados pelos governos brasileiros e latinoamericanos... Se vocês estivessem na Argentina, na Europa ou nos Estados Unidos já estariam enquadrados numa lei de mídia.

- Senhor, o nosso jornal está completando 40 anos, nos estamos mudando o nosso formato e os nossos conteúdos.. Queremos tê-lo como nosso parceiro!

- Eu sei disso! Mas agora eu estou respondendo as tuas perguntas.  Você me perguntou por que eu havia cancelado a assinatura, não foi isso? Então seguimos...

- O Grupo RBS pagou e divulgou uma campanha do pré-candidato Lasier Martins percorrendo os municípios do estado para debater a "situação" do Rio Grande do Sul. Lembra disso? Quantas vezes você leu algum notícia sobre a fraude na PROCEMPA ou sobre os convênios assinados pelo Instituto do Ronaldinho Gaúcho com a Prefeitura de Porto Alegre? Eu não vejo nada disso publicado! E sobre o escândalo de corrupção bilionária nos metrôs do estado de São Paulo? E sobre o envolvimento do Aécio Neves com a máfia da cocaína, em Minas Gerais? Menos ainda.

- Está bem! Existe algum outro motivo?

- Sim. Quase tudo que Zero Hora publica eu já li no dia anterior, na internet... Posso comparar e  contextualizar as notícias. Eu leio em blogs e acesso outras opiniões que me interessam. Quase tudo de graça! Só assinei o jornal para receber notícias culturais do estado e de Porto Alegre. Mas o Caderno de Cultura também está muito fraco... Até trás alguma matéria boa, assinada por algum colaborador simpático... Mas junto vêm dez ruins, preconceituosos, enfim...

- Senhor, eu estou ligando porque estamos com uma nova promoção: Se pagar apenas 28 reais por mês, o senhor poderá receber em sua casa a ZH com o Caderno de Cultura, sem os Classificados...

- Quantos meses? Até as eleições de outubro? Por favor, meu amigo, eu já conversei tudo isso com os outros vendedores que me ligaram e, sinceramente, não quero mais assinar este jornal.

- Senhor, nós estamos com uma promoção de apenas 28 reais por mês. O que o senhor acha disso?

- Meu amigo, em primeiro lugar eu não aceito que fiquem ligando para a minha casa! Em segundo, não te esquece de que eu já mencionei vários motivos: a divisão dos gaúchos, a campanha política, a parcialidade... Esqueceste? Não insista por que eu NÃO QUERO colaborar com a campanha da Ana Amélia Lemos, do Lasier Martins e com os demais candidatos do Grupo RBS.

- Mas nós não fazemos política!

- De novo? Está bem, eu entendo que a tua função é de vendedor de telemaketing pago e treinado para isso... Não quero e não pretendo te convencer do contrário. Só queria te ouvir e saber qual era a estratégia do jornal nesta véspera de eleições. Eu já respondi todas as tuas perguntas?

- Sim, senhor. Obrigado!

- Está tudo gravado, né?

- Sim senhor. Boa noite!

- Boa noite!

Desliguei achando que eu não iria receber mais ligações... Mas, outro dia recebi um torpedo  dizendo assim: Ricardo, continue com ZH e ganhe um KIT ESPUMANTE de presente... Ligue agora mesmo 0800-643.0046 e não perca essa oportunidade!

- Kkkkkkkkkkk. Mudaram de tática para atingir a velha estratégia!!!

Na verdade, eu não me sinto surpreso com essa tática agressiva da RBS, pois sei que o Rio Grande do Sul é um estado estratégico para o equilíbrio político regional (do Brasil e do Mercosul) e que os rumos da política brasileira também passam por aqui... Lá em Santa Catarina é bem mais evidente (será?), mas cheguei a pensar que aqui era diferente... É que eu entendo que os jornais e os programas de rádio só existem porque existem leitores e ouvintes...Caso contrário, eles mudam ou deixam de existir...

Agora fiquei com uma dúvida: Quem estava pagando a minha ZH?

Preciso saber, pois também sei que o Rio Grande do Sul já possui condições de editar, publicar e bancar um outro jornal diário (a exemplo de outros estados e países), com mais informações e coberturas jornalísticas bem mais sérias.

Enquanto isso não acontece, eu vou continuar me informando pela internet.

Os donos da bola

"No campo do adversário
É bom jogar com muita calma
Procurando pela brecha
Pra poder ganhar"
Gozaquinha

     Na minha infância e adolescência era comum encontrar meninos que acabavam com o jogo de futebol quando os seus times estavam perdendo. Eles eram chamados de “os donos da bola” e, às vezes, eram donos até das camisetas.  Estes meninos cresceram e, lamentavelmente, muitos deles ainda continuam assim: não aprenderam a conviver com as adversidades e com as diferenças.
 
   Desde cedo eles foram mimados e conviveram com a bajulação das famílias, cujos pais estavam melhorando de vida, durante o chamado Milagre Econômico. Aquele mundo infantil era cheio de fantasias e de aventuras, mas também de dúvidas sobre a capacidade de compreender o mundo, os outros e nós mesmos. Quem sou eu? O que os outros pensam de mim? E que mundo cruel é este? Faziam parte das nossas pré-ocupações.
 
   Para as mães ficava o papel de educadoras, pois os pais estavam quase sempre trabalhando. Elas somente perdiam o posto quando o amor era substituído pela professora, por Jesus Cristo, por Nossa Senhora, pelos padres, pelas freiras e pelos reverendos. Eles ensinavam a ser culpados e a fingir amar sem questionar os nossos desejos mais profundos. Assim, uma criança passava muitos anos para aprender a lidar com a vida real.
 
   Naquela época também era comum e engraçado chamar os outros por um apelido, quase sempre pejorativo. Mas isso acabava incomodando todos, pois todos que resistiam recebiam um daqueles maldosos “rótulos”. Na escola é que se revelava a relação de superioridade e de inferioridade, e onde o mundo era visto e aprendido como uma encenação de poder, de disputas e de opressão.
 
   Esse mundo se revelou mais ainda quando conquistamos a democracia e quando o Banco do Brasil resolveu cobrar as dívidas contraídas pelos antepassados, após tantos anos de empréstimos sobre empréstimos, juros sobre juros, viagens ao exterior e muitas risadas. O que ficou de herança? O sentimento de serem os eternos donos da bola.
 
   Para muitos deles, nesta nova e complexa realidade, que pode levá-los à pobreza ou a voltar aos velhos tempos de glória, acabou restando a opção de entrarem para grupos políticos e religiosos, e tornarem-se oradores e militantes conservadores. Assim, na vida e na internet, eles encontram uma forma de preencher o vazio deixado pelas velhas escolhas. O pior é que alguns resolveram identificar falsos culpados pelas oscilações de suas vidas: de judeus a homossexuais, de indígenas a esquerdistas, quase todos se tornaram motivos para destilar seus ódios e xingamentos.
 
   Na verdade, eles não querem reconhecer que foram educados para serem os chefes e que esse posto já não lhes pertence mais. Como a história não anda em linha reta, a radicalização da democracia está criando um ambiente favorável para novos aprendizados. Que aprenda quem souber!

Memórias de um 1º de abril


Era 1º de abril de 1964, e eu tinha apenas oito anos de idade. Naquela manhã o meu pai me levou pra passear no seu Simca Chambord pelas ruas desertas da cidade. Lembro que tinham montado barricadas na frente do 8º Regimento de Cavalaria e que quase ninguém havia saído de casa. Meses mais tarde, eu já estava desfilando com um uniforme militar e cantando o Hino Nacional na entrada do Grupo Escolar Rivadávia Corrêa. 

Na verdade, até 1973 eu não acompanhava o que estava acontecendo no meu país. Morando na fronteira Brasil-Uruguai, dava para aproveitar os últimos ares democráticos que ainda sopravam do lado de lá. Pois atravessando a linha imaginária eu conseguia assistir a filmes censurados e comprava livros que estavam proibidos no Brasil. Acho que isso diminuía um pouco a minha inquietação juvenil.

Vladimir Herzog - 1975
Confesso que, até 1975, eu não entendia bem o que significava viver sob uma ditadura militar. Acordei de vez quando os principais jornais da época anunciaram que o jornalista Vladimir Herzog havia se enforcado com uma tira de pano, amarrada a uma grade a menos de dois metros de altura. Eu já tinha 19 anos e a foto mostrava os pés do jornalista tocando o chão, com os joelhos dobrados.  Alguns meses depois, na porta de uma fábrica, o líder sindical Santo Dias foi morto ao tentar dialogar com os policiais para libertar os companheiros presos. A polícia agiu com brutalidade, e um PM atirou nele pelas costas. O corpo do operário morto só não desapareceu porque a sua companheira entrou no carro que transportava o  corpo para o Instituto Médico Legal.

Assim, aos poucos, através da imprensa alternativa da época e dos meus amigos, foram se revelando as matanças, as torturas e toda a corrupção que transbordava em quase todas as áreas. Também descobri que para isso acontecer eles precisavam do apoio da grande mídia e da máquina judiciária, divulgando informações falsas sobre aqueles verdadeiros crimes. Durante anos eu assisti confissões forjadas, laudos periciais mentirosos, autópsias fraudadas, queima de bancas de jornais e o desaparecimento de pessoas inocentes, após longas sessões de torturas. Com a grande mídia ao seu lado, alguns empresários internacionais, via governo dos EUA, compraram vários empresários brasileiros, alguns políticos e boa parte da alta patente do exército. Depois, utilizando intrigas e mentiras, foram desmantelando a universidade brasileira (ver acordo MEC-USAID), manipulando e dividindo a sociedade civil, e assim conseguiram apoio para os seus investimentos no país. Eles queriam a nossa mão-de-obra barata e a exportação das nossas riquezas naturais.

Roberto Marinho com os generais
e com Antonio Carlos Magalhães
Entre os casos de corrupção, eu lembro da Operação Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares), em que esta “organização” ganhou uma concorrência suspeita para a exploração de madeira no Pará, dos desvios de verbas na construção da ponte Rio–Niterói, da construção da Usina de Itaipú e da inacabada Rodovia Transamazônica. O General Golbery do Couto e Silva, por exemplo, um dos principais articuladores do golpe militar e das suas estratégias, também foi presidente da filial brasileira da empresa norte-americana Dow Chemical e, posteriormente, seu presidente para a América do Sul. Como calar diante disso tudo?

Naquela época, apesar da minha indignação, eu quase não tinha com quem conversar sobre estes assuntos em casa. Os meus pais, com medo de alguma represália, me pediam para não me meter na política. A minha mãe às vezes me falava do penteado que a Dona Dulce Figueiredo usava, e eu ficava &%*&¨¨%%$+_)( da cara.

Mesmo sem liberdade de expressão, fui me dando conta de que aquele modelo pregava abertamente o crescimento a qualquer custo, expulsando os homens do campo, acabando com as reservas indígenas, criando enormes cinturões de miséria nas grandes cidades e explorando os trabalhadores. Para garantir tudo isso, o congresso foi esvaziado de seu significado público, e criaram-se privilégios em todas as esferas de poder (municipal, estadual e federal), com a apropriação privada do que deveria ser público. As cidades de fronteira e as capitais dos estados (UFs) foram consideradas Áreas de Segurança Nacional e não tinham o direito de eleger os seus prefeitos e nem os seus escalões administrativos. Os governadores também eram indicados pelos ditadores, e os estados menores, como o Acre e o Amapá, à medida que a oposição avançava nos demais estados, ganharam o mesmo peso de representação no Senado, para garantir uma nova maioria. Essa e outras manobras políticas, os defensores do regime militar brasileiro nos deixaram como herança.

Quem viveu naquela época sabe que os ditadores se utilizaram da prática de tortura de uma forma institucionalizada. E que algumas dessas práticas ainda persistem em delegacias e prisões do nosso país. Aquele regime de força acabou promovendo, gratificando e dando garantias aos integrantes do aparelho de repressão política, como a anistia aos torturadores e o emblemático caso da homenagem ao delegado torturador Fleury, com a concessão da Medalha do Pacificador.

É notório que neste poucos anos de democracia e de liberdade conquistada, muitas pessoas estão aprendendo a conviver e a dialogar com as diferenças. A nossa paciência, aliada ao trabalho de base, com argumentos consistentes, foram desmanchando muito daquela velha onda reacionária e conservadora. 

Faz tempo que eu estou convencido de que o combate à corrupção passa pela luta por mais participação e por mais democracia. Ou seja, quanto mais informações e controle social, menos corrupção e menos autoritarismos... 
Editorial do jornal O Globo - ano 2013
Por isso, o dia 1º de abril deve ser um dia de memórias e de reflexões para nós... Ainda mais que alguns fantasmas insistem em propagar intrigas, mentiras e fazem uma verdadeira tortura psicológica nas Redes Sociais, apesar de tudo o que já foi revelado.

Uruguai: um lugar especial nas minhas memórias

    Era final dos anos 60: época dos Beatles, Rolling Stones, Che Guevara, Woodstock, Jimmy Hendrix, Janis Joplin e tantos outros. Ouvia-se falar na Guerra do Vietnã, mas eu não sabia que havia revoltas na França e nem imaginava que o Jean Paul Sartre e a Simone de Beauvoir existiam. Também não sentia falta da democracia pois eu me deixava "embebedar" pelos ares democráticos que sopravam lá do lado do Uruguai, onde se podia viver de um modo mais livre e espontâneo.

    Como Demian, do Herman Hesse, eu recém estava reconhecendo o mundo fora de casa. A rua e o cinema me revelavam a existência de novas paragens, novos olhares e muitas outras culturas diferentes da minha. Assim, e por morar naquela fronteira, acabei assistindo a vários filmes que não podiam passar no Brasil em função da censura durante o regime militar, como: Z, Sacco e Vanzetti, Mimi – o Metalúrgico, A Classe Operária vai ao Paraíso, O Fantasma da Liberdade, Zabriskie Point, Teorema, Amarcord, Decameron, Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, Easy Rider, A Laranja Mecânica, Tommy e O Último Tango em Paris. Além do mais, no Brasil daqueles tempos sombrios, quase todo o filme era cortado e/ou proibido para menores de 18 anos.

    Foi nesse contexto que eu também conheci a noite nas mesas dos bares da Sarandi e dos bairros mais afastados, onde era comum encontrar amigos(as) para analisar aqueles belos filmes. Assim, aos poucos foram surgindo  reflexões sobre as diferentes formas de repressão, das sexualidades, e se debatia sobre as injustiças humanas. Assim, a minha geração teve a oportunidade de lutar por justiça, elevar os seus sentidos e abrir as portas da imaginação para o infinito. 

    É preciso lembrar que esses filmes somente passaram no Brasil depois da grande crise mundial do petróleo, de 1972, e, principalmente, após o fim do regime autoritário, em 1985. Um pouco antes, com o fim da censura e com a Lei da Anistia, em 1979, eles já começavam a passar nos cinemas que ainda não haviam se transformado em igrejas evangélicas. Os militares uruguaios deram o golpe em 1973 e tudo aquilo que nos alimentava foi desaparecendo ano a ano... No final dos 70 ainda era possível comprar LPs da Janis Joplin, do Jeferson Airplane e do Santana, na Casa América e no Peppo, assim como livros de arquitetura, do Sartre e do Ernesto Sábato, os quais eu guardo com muito carinho. 

    Hoje, eu reconheço que aquelas músicas e livros foram importantes na lapidação da minha sensibilidade cultural, mas aqueles filmes foram fundamentais na minha educação para a vida... E é por isso que eles merecem um lugar especial nas minhas memórias.

     Para celebrá-los, eu publico as lembranças de Federico Fellini, em Amarcord.





Um contador de histórias reais


Dagoberto e Noemy
Ao meu pai, Dagoberto D'Avila Almeida
in memorian


Filho de um tropeiro e de uma costureira, o jovem Dagoberto ficou órfão de pai quando ele tinha apenas 17 anos de idade. Como era o mais velho de cinco filhos, dizem que ele foi fundamental na educação e na formação dos seus irmãos. Eu me lembro dele nos domingos na piscina do Santa Rita, onde ele foi o sócio número 2, e dirigindo um Simca Chambord, um Esplanada, um Tufão, um Rally e um Itamaraty, que depois, bem mais tarde, descobri que aqueles carros também eram seus "negócios de ocasião”. 

Lembro também dele como um bom empreendedor, que sempre se orgulhava de ter comprado um escritório de contabilidade completo. Assim, nós fomos educados ao som daquelas velhas (à época eram modernas) máquinas Olivetti, Remington, Burroughs e Royal, que nos anos 80 foram aos poucos sendo substituídas por computadores.

Bem diferente da minha mãe, de quem herdei um prazer pela música e pelas artes, ele acabou me influenciando profundamente na análise crítica da sociedade. Como ele era um contador reconhecido na cidade, fazia a contabilidade e declaração de renda de aproximadamente 200 pessoas e empresas de Livramento. Por isso, tinha uma visão subterrânea dos negócios de famílias locais e costumava comentar algumas dessas histórias com os filhos na hora do almoço e do jantar.

Era comum escutar situações verídicas envolvendo as disputas por heranças, as preocupações que alguns fazendeiros tinham de dividir as terras entre os herdeiros, as dificuldades financeiras por que passavam determinadas famílias e também, é claro, das maracutaias que alguns empresários locais faziam para sonegar impostos ou passar as mercadorias para o outro lado da fronteira. Quase todos aqueles que chegaram na cidade nos anos 60, 70 e 80 procuravam o Dagoberto para se orientar. Também havia aqueles que, pegos pela fiscalização tributária, voltavam implorando por uma assessoria com uma certa urgência.

Eu assistia a tudo como um grande documentário e, junto com os meus irmãos, o desafiava seguidamente a escrever um livro de memórias, com a promessa de publicarmos somente dez ou quinze anos depois da sua morte. Lembro que ele começou a escrever duas ou três versões, mas disse que acabou queimando depois de ler os resultados.

O que terá escrito? Qual terá sido o motivo dessas desistências? Uma questão ética? Pensou nos empresários locais? Na minha mãe? Em nós? Até hoje não sei o que acabou pesando mais!

Hoje, no dia 18 de fevereiro ele estaria completando 86 anos de idade, e no mês de março completam os quinze anos do seu falecimento, então resolvi deixar registrado um novo agradecimento (in memorian), pois muitos eu fiz em vida, nas longas e gostosas conversas que tivemos ao redor de uma mesa.

Mas, o que quero dizer com tudo isso? Porque eu disse que acabei herdando uma capacidade de análise crítica da sociedade?  

A gente não consegue perceber toda a cultura herdada naturalmente dos nossos pais. É tão natural que os nossos olhos e ouvidos consideram tudo muito normal. Vejam se eu não tenho razão: além dos comentários, ele lia diariamente e conseguiu nos repassar de forma natural um prazer pela interpretação das notícias e também pela leitura das entrelinhas. Por outro lado, nós aproveitávamos todo aquele reconhecimento público dele para entrar livremente nos diferentes clubes da cidade. Assim, fomos convivendo com  diferentes situações e com diferentes classes sociais. Em alguns clubes a gente aprendeu que o segundo "escalão" sempre sentava afastado da pista de danças, mais perto do balcão do bar. Que os endividados disfarçavam muito bem e não demonstravam preocupação alguma ao se divertir. Que novos empreendedores chegavam aos poucos e iam tomando conta dos bailes, dos clubes e também da cidade. Para nós, cada baile era quase um reflexo daquela sociedade. 

      Certo dia ele me perguntou o que eu achava de uma manchete bombástica do jornal A Plateia e eu apontei para o imenso anúncio de primeira página do Frigorífico Armour. Ali selamos um tipo de pacto silencioso: é que ambos sabíamos ler as notícias dos jornais e da TV, considerando os interesses dos seus fiéis patrocinadores.

Saber disso tudo tem o seu lado bom, mas impõe certas precauções. Por conhecer muitos segredos contábeis familiares não era conveniente ele frequentar certas rodas da cidade. E assim, para manter os seus segredos, ele fumava três carteiras de Minister por dia. O seu prazer ficava na leitura, nas pescarias e nos programas de televisão. Bebia um uísque à tardinha, dormia cedo e acordava de madrugada, bem antes do primeiro galo cantar.

Quem conheceu o Dagoberto talvez entenda porque resolvi registrar essas pequenas recordações. Para quem não o conheceu, destaco que ele era um bom contador de histórias reais. Era maçom, com críticas profundas aos “aproveitadores” da maçonaria, e sabia hipnotizar com a sua Parker 51 – e até foi apelidado de “El Brujo” por alguns dos nossos amigos. Mas essas já são outras histórias...

Entender essas contradições dele me faz pegar um pouco mais leve com a vida. Ainda mais que a minha mãe sempre me dizia: - Saiba de tudo, mas não leva a vida tão a sério!