Os sonhos não envelhecem...

O Clube da Esquina é um tipo de guia espiritual para a minha geração. Nos anos 70 a gente se reunia para sonhar e não tinha medo de amar. Ainda hoje, quando escuto essas músicas, sinto a mesma emoção daquela primeira vez quando conheci esses "mineiros" universais, pois sempre surgem novas descobertas, dúvidas e muita serenidade para seguir em frente...


Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço....
Porque se chamava homem
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases
lacrimogênios
Ficam calmos, calmos, calmos
E lá se vai mais um dia
E basta contar compasso
e basta contar consigo
Que a chama não tem pavio
De tudo se faz canção
E o coração
Na curva de um rio, rio...
E lá se vai mais um dia
E o Rio de asfalto e gente
Entorna pelas ladeiras
Entope o meio fio
Esquina mais de um milhão
Quero ver então a gente,
gente, gente...

Luau

 Fotografia de Ricardo Almeida

A política da inércia

 "O que o labirinto nos ensina não é onde está a saída,
 mas quais os caminhos que não levam a lugar nenhum."
Norberto Bobbio
"


Existem algumas práticas políticas que podem ser comparadas com a inércia, ou seja: se "as coisas" estão em movimento, querem continuar em movimento; se estão paradas, não desejam mover-se. São fenômenos que se fortalecem quando não existem projetos coletivos locais e nem o debate público da "coisa pública" (res-pública). 
Infelizmente, a grande maioria das pessoas se movimenta apenas quando ocorre algum fator externo à sua vontade.  Em algumas sociedades já existe uma intervenção política mais madura, diferenciada e orgânica, pois a política passou a ser tratada como uma atitude pedagógica e se tornou parte da cultura hegemônica local. Em outras, essa inércia continua se manifestando com "naturalidade" (sic), pois as suas lideranças lembram-se das organizações locais, representações legítimas da sociedade civil, somente nos seus momentos difíceis ou nos períodos eleitorais. Assim, acabam reduzindo o fazer político e apenas se preocupam em representar um  bom "papel" na sociedade. Esse fenômeno cresce à medida em que se fomenta a escolástica, o espontaneísmo e o culto a personalidade .

A escolástica não é tão nociva, mas ela não tem um comprometimento prático com a vida e se alimenta do debate acadêmico sobre a realidade ou irrealidade das "coisas". Vive apenas da especulação acadêmica e abstrata, se distanciando da sociedade que sussurra e implora ao seu redor.

Já o espontaneísmo é um caso típico da falta de projetos propositivos. Aparece quando as chamadas "lideranças" não se relacionam organicamente com os movimentos sociais, não formulam e não constroem projetos pedagógicos capazes de sensibilizar o “senso comum” existente. Na maioria das vezes, essas “lideranças” acreditam que não lhes cabe propor alternativas e que tudo deve ser fruto da “espontaneidade” das pessoas. Na verdade, acabam confundindo projetos coletivos com a soma de pequenas demandas localizadas, corporativas ou não. Assim, o resultado acaba sendo a fragmentação e a dispersão “natural”(sic) em  frágeis e pequenas organizações, já que o envolvimento das pessoas passa a depender da existência de contradições localizadas. Ou seja: SE existir algum conflito local, SE as pessoas tiverem algum tipo de inquietação, SE houver o desejo de participar, e SE existir alguma identificação com as lideranças.


O culto à personalidade é o mais destruitivo deles, pois se utiliza da propaganda para divulgar e impor um projeto político pessoal. Não se relaciona como iguais e entre iguais; acredita que existem "Salvadores da Pátria". Pior do que isso, acredita que representa esse "salvador". Na nossa história temos vários exemplos práticos: os Cézares, o nazismo, o stalinismo e o maoísmo  sempre se utilizaram  destes "truques" para enaltecer certas “imagens” e a si próprios. A Igreja Católica também se utiliza dessa prática em seus cultos e na adoração aos santos (que eram humanos, como nós). Portanto, é um fenômeno antigo, mas que ainda perdura com muita força no nosso meio.

No entanto, tudo isso desaparece, ou tende a desaparecer, à medida em que se revela publicamente a falta de consistência das propostas. O bom debate e o questionamento detalhado será sempre a  melhor arma para revelar o que se esconde por trás de cada promessa e de cada interesse imediato.

O novo papel dos municípíos

Responda esta questão: o que devemos fazer quando os municípios brasileiros ganham mais e mais importância nas ações diretas de Governo Federal? O que fazer quando os municípios são reconhecidos como entes federativos, desde a Constituição de 1988? Eu acredito que precisamos avançar com o fortalecimento das ações maduras que existem no âmbito municipal e estadual. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10.07.2001), por exemplo, regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição, e o município passou a ser o mais importante espaço de disputa política e de democratização da "coisa pública" (res-pública). Com essas mudanças, a organização de novas estruturas de poder e a implementação de novos projetos cidadãos passaram  a acontecer nas cidades (na Polis, πολις). As disputas estão se dando nas cidades... Da inclusão social à valorização da cultura local, da luta por direitos pelo saneamento básico à existência de um Plano Diretor Participativo, do reconhecimento das diferentes etnias e a luta das mulheres à diversidade de gênero.

Portanto, para avançarmos nesse novo contexto, precisamos  aproximar e reunir o máximo de pessoas livres e comprometidas com as lutas diárias, para fortalecer todas as ações de cunho federativo que estão despertando em cada esquina. Enfim, precisamos canalizar a nossa energia para as ações locais,  relacionando-as  com as questões estaduais e nacionais, de forma integrada. Evitar essas saídas "fáceis" que sempre surgem em épocas de eleições, principalmente aquelas que já sabemos que não nos levam a lugar nenhum.

Florianópolis, julho de 2010
Ricardo Marques Almeida

Quais são as dimensões do teu olhar?

"Que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode ou não. ..."
Cabeça - Walter Franco

Tem gente que olha para a Paris atual e vê apenas a aparência da cidade. Não vê, por exemplo, que aquelas largas avenidas são o resultado de um plano urbanístico para combater as epidemias que se alastravam pela região e ameaçavam as suas elites. Na mesma época, meados do século 19, Londres também construiu o seu sistema de saneamento (com galerias subterrâneas) pelo mesmo motivo. Barcelona se mobilizou apenas no início do século 20 e construiu o famoso bairro Eixample. Enquanto isso, em Montevideo e no Rio de Janeiro, as pessoas defecavam e urinavam nas calçadas. Ainda hoje as cidades brasileiras não fizeram o seu dever de casa e as pessoas costumam elogiar a "natureza" que existe no Rio de Janeiro, em Salvador e em Florianópolis.

Quando estudei arquitetura e urbanismo, no final dos anos 70, o professor de história Carlos Carrere me ensinou que nem todo mundo vê e representa a realidade da mesma maneira. Enquanto uns observam apenas a estética das coisas, outros analisam as suas funcionalidades. Mas, dizia ele: nós precisamos aprender a analisar a estética, as funcionalidades e, ao mesmo tempo, o contexto.

Esse professor uruguaio também nos dizia que a representação visual dos seres humanos foi se modificando através da história, até alcançar uma dimensão transversal e complexa. Para provar essa tese, ele se utilizava da análise de diferentes  pinturas, desenhos e gravuras, considerando alguns elementos objetivos e  outros subjetivos. Por exemplo, a Santa Ceia - ano 1498 - seria uma das primeiras representações da terceira dimensão (a profundidade) na história da humanidade, com o uso da perspectiva e a Guernica (leia-se, o cubismo), de Picasso - 1937 -, inseriu a dimensão do tempo ao representar um "objeto" em seus diferentes ângulos (simultaneamente). Traduzindo: Leonardo da Vinci teria representado uma visão muito sensível para a sua época, mas convergindo para um único "objeto" (no caso, Jesus Cristo, ao centro da mesa) enquanto Picasso, quatro séculos depois, teria superado esta visão de reconhecer apenas uma perspectiva.

Depois daquelas aulas,  nunca mais vi um filme hollywoodiano do mesmo jeito que os da Cinecittá. Comecei a mergulhar muito mais na sensibilidade histórica que existia num Satyricon, de Fellini, ou num Decameron, de Pasolini, pois os personagens me pareciam bem mais interessantes e reais, em suas épocas.

Sei que algumas pessoas poderão discordar e defender o seu ponto de vista. Mas entendo que estarão apenas confirmando o que tento dizer nessa reflexão. O que me conforta é que vejo as novas gerações construindo um  novo olhar transversal dos fenômenos, navegando na internet, nos smartphones e nas redes sociais, reconhecendo os diferentes olhares existentes. Triste de quem ainda insiste em ver apenas o seu ponto de vista!

Pois, para oxigenar esta relação, eu proponho que a gente identifique as dimensões de cada olhar, analisando e interpretando algumas imagens... Te identificas com algumas delas? Afinal, qual é a máxima representação possível da realidade?


4a. Colônia de imigração italiana

Fotografia enviada por Claudiane Weber (Florianópolis)

Esta foto eu bati enquanto um grupo de adolescentes aguardava ser chamado para desfilar na Festa do Arroz, na cidade de São João do Polêsine -  4a. Colônia de imigração italiana - no interior gaúcho - Claudiane Weber.

Por uma filosofia não antropocêntrica!

Texto enviado por Eduardo Soares (Brasília)
Pessoal,

A idéia do BLOG é boa, e está ficando interessante!

Como já tem manifesto, filmes etc., lembrei - como leitor assíduo que sou - que usar este espaço para trocas sobre livros pode ser igualmente interessante.

Então, recomendo abaixo quatro livros que li este ano e que foram muito legais. Todos são não-ficção e, de uma forma ou de outra, tem a ver com minha atividade profissional e com a minha inserção como cidadão do mundo.

CACHORROS DE PALHA - John Gray, filósofo inglês ligado ao grupo da Teoria Gaia. É a crítica mais contundente que já li ao antropocentrismo de nossa civilização, pondo desde nossas religiões até o humanismo, marxismo, situacionistas e tudo o mais num único saco. O livro é centrado numa crítica à filosofia como fundadora da crise ambiental e sobre a necessidade de criarmos uma filosofia não antropocêntrica. Vale muito a pena ler!

BREVE HISTÓRIA DE QUASE TUDO - Bill Bryson. Um apanhado geral sobre como a ciência chegou a saber o que sabe (ou o que supõe saber). Me senti fazendo uma espécie de "supletivo do segundo grau", com o autor percorrendo temas aos quais fui apresentado no ginásio ou científico - obviamente sem a habilidade didática que o escritor demonstra agora. Vale como atualização, mas para muitos assuntos, fez “cair a ficha” sobre temas que no passado só acertei em prova por pura decoreba, mas não por entendimento.

O MUNDO SEM NÓS - Alan Weisman. O autor (jornalista) se propôs a informar-nos sobre o que acontecerá com o planeta após o desaparecimento de nossa espécie, o que ele advoga como iminente (ele também partilha da tese Gaia). Desmonta, concordando com o John Gray, mas por outro caminho, a tese de que a vida acaba, mostrando que a vida não é antropocêntrica mas - felizmente - "caga e anda" prá humanidade. Entretanto, ela terá que se adaptar às seqüelas com que a humanidade registra sua passagem sobre o planeta. Neste caminho, expõe a falsidade de certas "soluções" engendradas pelo sistema, como o plástico biodegradável e a própria trangenia, e de como nosso domínio da natureza é pífio/risível Ao fim, nos dois ou três últimos capítulos, faz uma pequena discussão filosófica sobre o post morten, sobre se podemos esperar algo nela. É complementar ao CACHORROS DE PALHA... enquanto o John Gray filosofa, ele, Weisman, trabalha provas/evidências.

ELOGIEMOS OS HOMENS ILUSTRES - James Agee (escreveu) e Walker Evans (fotografou). Este livro é considerado um marco na história do jornalismo mundial. Feito a partir de uma encomenda de reportagem sobre como sobreviviam camponeses durante a Grande Depressão, a qual foi rejeitada pelo demandante. Ainda não acabei de ler, mas é um livro incomum por sua estrutura, que entremeia as notas/observações do autor descrevendo o que vê com suas reflexões éticas e filosóficas sobre o sentido do seu trabalho e o direito de fazê-lo devassando a vida das pessoas (ele fez "imersão", à moda Chambers/DRP, por 3 meses, junto a três famílias de camponeses brancos meeiros de algodão) . A descrição sobre a materialidade dos camponeses, suas casas, mobília, roupas, rotinas, etc. é barroca, tal a refinação dos detalhes - e ele ainda reflete sobre o quanto esta materialidade determina/influência o modo de pensar/perceber o mundo (e o quanto limita a infância camponesa). Neste sentido, é quase determinista. Diferente é o mínimo que se pode dizer deste livro que, pelo barroco do texto, é difícil tanto quanto encantador em sua prosa seguidamente poética.

Essaouira, no Marrocos

Fotografia de Guto King (Pelotas - RS)

Perspectivas


Enviado por Miguel Ângelo Dias (Florianópolis)
Há alguns anos, uma pessoa me contou que, por ter sofrido um acidente, teve que mudar sua postura, erguer mais a cabeça, e que isto lhe dera outra perspectiva: que passara a ver as coisas materiais e a vida por outro ângulo. Quando nos olhamos no espelho, nos vemos de frente; se usarmos um jogo de espelhos, poderemos nos ver de perfil e até de costas, visões bem diferentes de nós mesmos. Um objeto pode nos parecer maravilhoso quando visto de um ângulo e horrível, quando visto por outro lado.
E assim é o mundo como o vemos. Numa noite destas, um amigo, comentando sobre os prós e contras da vida, me disse: “As pessoas dizem ‘tudo bem’, ‘tudo bem’ quando nada está bem!” Ele estava coberto de razão, se olharmos por seu ângulo, afinal o mundo não anda nada bem. Agora perguntemos: “Quando o mundo andou bem? Quando foi que se viveu em perfeita harmonia, em perfeita justiça social ou mesmo em consonância com a Natureza?” Se alguém responder que foi antes de o homem surgir na Terra, a resposta não vale, por óbvia. É que o homem veio para revolucionar o mundo, construindo e destruindo. Na mais das vezes, destruindo.
        Falamos do homem como algo à parte de nós mesmos, mas nós, humanos, somos o grande problema e, simultaneamente, a solução; mera questão de perspectiva. Ver que as coisas não estão bem, é bom; ficar sempre olhando por este lado, já não é tão bom assim, pois nos consome inutilmente, nos impedindo de ver possíveis soluções.
Otimismo?
        Para o pessimista, o mundo é mau e não tem solução; o ingênuo otimista vê fácil solução para tudo. Para que algo possa ser feito para se melhorar o mundo, temos que abarcar muitas perspectivas do Universo que nos cerca, adotar uma visão holística; temos que ser realistas: lidar com possibilidades e não com certezas. A visão pessimista nos torna egoístas; o otimista age como tolo: ambos são, ao fim e ao cabo, destruidores. Quem pode construir algo é o realista, que aprende a negociar com o meio, aceitando o inevitável, mas pondo sua energia em ação com o intuito de só tentar modificar o modificável.
        Focar o passado só é válido se o fizermos para aprender algo; para o futuro, só adianta olhar se estivermos plantando alguma coisa. Vivamos bem o agora, semeando o respeito e a paz, pois, por utópico que isto possa parecer, sempre estaremos aprimorando o mundo, pelo menos à nossa volta.

As grandes lições da montanha

 
O meu amigo Fernando Recuero, o Fefa, fez recentemente um trekking no Aconcágua e nos enviou um outro olhar lá da montanha. Leiam alguns fragmentos do diário que ele escreveu:

(...) Só há uma coisa sensata a fazer: prosseguir. Mesmo quando o corpo começa a dizer não.
Os pensamentos continuam a fluir. Devaneios andinos: Não quero morrer aqui! Fico pensando: estou exausto, mas vou prosseguir... Vou caminhar, vou conseguir! E lá vamos nós, em frente, extraindo forças não sei de onde... Por certo, são forças que movimentavam nossos corpos... Não em busca de um objetivo, mas de permanecermos vivos.
O esgotamento físico está estampado em nossas caras. Parecemos uns zumbis, autômatos, uns sobreviventes... Caminhamos muito lentamente, pois a altitude impõe um ritmo lento. Falta força e fôlego! O coração há muito tempo funciona bem acelerado... Estamos o tempo todo ofegantes e muito cansados. (...)
Fotografia de Fernando Recuero (Farroupilha - RS)
As grandes lições da montanha ensinam muito sobre o que é o companheirismo e o espírito de solidariedade que existe neste ambiente extremo... E como as situações adversas aproximam e nos tornam mais humanos. As coisas ganham outro valor e sentido.
A vida e as coisas na montanha são simples como um prato de sopa e uma xícara de chá, e isto tem um valor imenso neste mundo das alturas. (...)
Não celebramos somente a ida, mas principalmente a nosso retorno. Fomos a um limite e o ultrapassamos. Mas, o mais importante é que voltamos!
Foi uma grande experiência de vida, sobre a vida.

Cumbiera intelectual

A música me persegue por toda vida! Considero fundamental termos sempre uma trilha sonora em sintonia com as nossas atividades diárias. Hoje, me veio a idéia de compartilhar com vocês alguns clips musicais que estão disponíveis na internet e que me fazem muito bem... Para começar, vejam este do canadense/argentino Kevin Johansen, que fala de uma mulher que só gostava de conversar sobre livros e de "papos intelectuais". Façam um bom proveito!



Sob o ceú da fronteira

Fotografia de Ricardo Almeida

A fronteira não é um limite


Tolerar a existência do outro
 e permitir que ele seja diferente,
ainda é muito pouco.
Quando se tolera,
apenas se concede
e essa não é uma relação de igualdade,
mas de superioridade de um sobre o outro.
Deveríamos criar uma relação entre as pessoas,
da qual estivessem excluídas
a tolerância e a intolerância.”
José Saramago
Nasci em Santana do Livramento, um município que se situa numa fronteira política bem ao sul do Brasil (al norte del Uruguay). Durante a minha vida, consegui ultrapassar outras tantas não-políticas, pois a inquietação sempre me levou a fronteiras psicológicas, conceituais, científicas e até religiosas. Nessas viagens do pensamento, aprendi, por exemplo, que em todas elas não há um obstáculo intransponível, mas uma nova possibilidade de interação, como se fossem marcos de referências para novos universos que se abrem, um para o outro, misturando conhecimentos, sonhos, falas, hábitos, arquétipos e costumes. Pois, nesse espaço-tempo foram se revelando e se perpetuando vários universos mezclados e caórdicos, onde o caos e a ordem convivem em quase perfeita harmonia.
Sei que Livramento e Rivera sempre ocuparam um território com muitas práticas comuns interessantes, mas também sei que o mundo pouco conhece essas práticas. Talvez conhecendo, pudesse evitar tantos novos conflitos étnicos e culturais que estão se proliferando pelo planeta. É que lá na fronteira, existem muitas identidades e singularidades que se mezclan casi sin percibir sus diferencias culturales. Em dezembro passado estive por lá e assisti ao lançamento do livro Retratos do exílio: solidariedade e resistência na fronteira, do santanense Marlon Aseff e também a uma homenagem para o Carlos Urbim, outro escritor conterrâneo, que nos disse que “as pandorgas se cruzam naquele imenso céu azul, sem perceber que estão cruzando fronteiras”. O escritor argentino Jorge Luis Borges também já fez referências a esse território tão contraditório, e José Hernández começou a escrever o seu Martín Fierro do lado de cá da linha política imaginária. Mas, o que mais existe de interessante por lá?

Desta vez, percebi que ainda existe um sentimento profundo de convivência e de solidariedade junto com fortes contradições culturais que latejam incessantemente na cabeça das pessoas. Muitas sequer imaginam que as melhores universidades do planeta estão debatendo e pesquisando o conceito de alteridade, que é a aceitação do Outro enquanto diferente de mim mesmo. Aceitação do meu modo de ser, considerando o modo de ser do Outro. Ou seja, estudam aquilo que o povo dessa fronteira pratica no seu dia-a-dia sem quase se aperceber.

Como a Europa e uma boa parte do mundo estão vivendo novos conflitos étnicos, políticos e culturais, a intolerância se tornou visível nos países que ocorrem novos processos migratórios. Antigas colônias não aceitam a globalização apenas da matéria prima ou dos produtos, e também querem globalizar a mão-de-obra e a inteligência que ficou descartada pelos seus novos e antigos usurpadores. Então migram do Oriente, da África e da América em busca de melhores condições de vida e de um novo tipo de convivência étnico-cultural.

Sei que muita gente ainda resiste a provar o sabor dessa estranheza cultural. Mas isso é fruto da educação que tivemos... Ou melhor, das belas mentiras que nos transmitiram “educadamente” nos primeiros anos de vida. Também creio que nós brasileiros precisamos observar melhor e valorizar a nossa rica e diversificada convivência multicultural: do kibe à caldeirada, da paella à feijoada, dos brotos de bambu à pizza napolitana. Pois, tudo isso cabe numa boa mesa! Não é? Por que não?
 

Uma raça e diversas culturas...

A minha amiga e antropóloga Barbara Arisi (foto ao lado)  ganhou um concurso de fotos organizado pelo RAI - Royal Anthropological Institute - na Inglaterra. As fotos dela serão usadas em materiais didáticos para divulgar a antropologia. No próximo dia 8 de julho, uma delas será exposta no British Museum, quando professores e pesquisadores irão conversar com estudantes. A Barbara acredita que isso pode ajudar a conseguir um curso de fotografia e video para os jovens Matis , que vivem na Amazônia brasileira.

Vejam a foto da Victória (minha amiga, filha da Barbara e do Frank), junto com um indiozinho Matis:


Esta outra foto venceu na categoria Religião e Espiritualidade:

Utopia e barbárie

O César Cavalcanti (foto ao lado) me enviou um email anunciando o novo documentário do Silvio Tendler, intitulado Utopia e Barbárie. O filme foi lançado comercialmente em abril mas ainda não chegou em todas as capitais. Quando será que ele vem por aqui? Para quem não sabe, o Cesar Cavalcanti atualmente mora em Florianópolis e é documentarista e diretor de produção de belos filmes nacionais. Também ministra oficinas de produçăo nas áreas de cinema e vídeo.

O site do Utopia e Barbárie contém diversas entrevistas, comentários e depoimentos em vídeo. Veja no endereço: http://www.utopiaebarbarie.com.br

Mais um olhar, sintonizado com o nosso olhar em movimento.

O movimento das ondas...

Fotografia de Ricardo Almeida

Manifesto (quase) futurista




"Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára"
Cazuza
1. Um espectro ronda a vida das nossas organizações: é o fantasma da nova era da informação e do conhecimento. Estamos vivendo um desses raros momentos decisivos da história humana e, ao mesmo tempo, as nossas organizações estão cada vez mais dilaceradas. Sabe por que isso está acontecendo? É que a sociedade industrial está sendo substituída pela sociedade da informação e do conhecimento. Quem ainda não se atualizou em conceitos, métodos e sentimentos, não consegue se comunicar nessa nova dinâmica, que é totalmente diferenciada das velhas práticas hierárquicas industriais;

2. Neste momento, as nossas vidas estão em jogo, assim como as vidas futuras de nossos filhos, netos... Se por um lado, presenciamos a falência das antigas concepções (consciências) de organizações que aprendemos no passado, por outro continuamos sendo ameaçados por velhas manifestações racistas, homofóbicas e nacionalistas;

3. Os novos líderes estão sendo incapazes de compreender e traduzir a complexidade da vida moderna. Uma vida caracterizada pela forte presença de indivíduos mais bem informados, pelo crescimento de conquistas de direitos individuais, surgimento de redes de informação, velocidade da comunicação (televisão e internet), mas também pela dificuldade em traduzir tanta informação em novos conceitos, pela incompreensão da transversalidade dos fenômenos (complexidade), a má ocupação do tempo ocioso e pela triste proliferação de grupos de pessoas céticas, dispersas e solitárias (principalmente nas grande cidades);

4. Toda estrutura organizacional criada de forma espontânea e aparentemente natural tem levado as pessoas à descrença e ao desânimo. Em alguns casos, vimos uma burocratização dos relacionamentos afetivos e uma enorme dificuldade de comunicação, que respeite a diversidade de linguagens, de etnias, de sexualidades, de gêneros, de ideologias, de religiões, de classes sociais, etc.;

5. A maioria das alternativas surgidas ainda reproduzem os sistemas burocráticos, centralizados e tiranos, pois não possuem democracia interna. Embora o discurso dos seus "líderes" (?) fale em participação e em democracia, na prática não consegue esconder suas contradições (a teoria versus a prática);

6. Uma epidemia de fracassos organizacionais acontece porque a  maioria das pessoas ainda se baseia na concepção hierárquica da Igreja, dos exércitos, das velhas fábricas da 1ª e da 2ª revolução industrial e dos partidos centralizados;

7. A maioria dos desejos, dos sonhos e dos planos ficam apenas no papel, e acabam servindo para fins políticos de pequenos grupos. Ou melhor, como os novos "líderes" não percebem a importância da reflexão ampla e coletiva, pois acreditam cegamente nos seus pré-diagnósticos parciais, não incentivam a emancipação de sujeitos históricos conscientes. Isto é, não adotam uma práxis coletiva, transformadora e eficaz;

8. É preciso compreender que uma organização de "novo tipo", para ser eficaz, deve estar orientada por um propósito maior, que una a maioria das pessoas envolvidas e seja sedimentada por valores (princípios) democráticos radicais. Ao mesmo tempo, as pessoas envolvidas não podem ser tratadas como "objetos", mas como sujeitos de uma ação individual e coletiva;

9. Esta reflexão apareceu superficialmente no pensamento do jovem Marx, se aprofundou em Gramsci, e está presente na teoria de Max Weber sobre a importância das "burocracias". Tornou-se um dos pilares da pedagogia libertária de Paulo Freire e continuou sendo aprofundada nas obras de Norberto Bobbio, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Pierre Bourdieu e de Dee Hock – fundador e CEO Emérito Visa, além de outros contemporâneos. Ou seja, trata-se de uma profunda reflexão sobre o período pós-industrial, e principalmente da atual era da informação e do conhecimento;

10. Na história política, essa reflexão tomou corpo na crítica ao estalinismo, ao marxismo dogmático e ao surgimento dos estados burocráticos, e se fortaleceu no chamado Maio de 68, na França. No Brasil, chegou um pouco mais tarde, no início dos anos 80, contornando a construção do Partido dos Trabalhadores, da CUT e do MST;

11. Na verdade, trata-se de uma busca pela identificação do propósito (Para quê estamos aqui? O que queremos nos tornar?) e dos princípios (Os fins justificam os meios?) de cada organização. Mas também faz o questionamento da eficiência da estrutura organizacional adotada;

12. Portanto, é preciso traduzir a mais alta aspiração das pessoas envolvidas no processo organizativo e, ao mesmo tempo, criar diferentes e combinadas formas de organização que permitam a implementação de um determinado projeto coletivo e estratégico. As pessoas não podem estar organizadas apenas para "eleger o candidato X, Y ou Z" ou para "ganhar dinheiro". Um propósito precisa ser compartilhado e experimentado por todos, sem chavões e nem adjetivos, e juntamente com os princípios (valores), deve servir para orientar e unificar a ação dos membros da organização em projetos autônomos e convergentes (num centro estudantil, numa entidade de classe, na construção de um Partido, num comitê de campanha, num mandato parlamentar, numa empresa etc.);

13. Numa sociedade que tiver a democracia como princípio básico e universal, as organizações, os governos e o Estado precisam ser controlados permanentemente pela sociedade civil. Isso somente poderá acontecer se tivermos organizações de "novo tipo" vigilantes, com lideranças que reflitam sobre e compreendam esse novo momento da história humana;

14. Esse processo será sempre uma reflexão cheia de surpresas, de conflitos, de piadas e até de risos, pois em cada uma delas se revelarão as mais diferentes visões e contradições. Somente o tempo e a própria experiência é que deverão propiciar uma definição mais clara sobre os melhores caminhos a percorrer;

15. Mas é somente através da reflexão sobre essas experiências contraditórias que as pessoas se motivarão até se tornarem confiantes, para construir uma nova cultura e, consequentemente, os alicerces de uma nova sociedade. Agora, independentes de fetiches, de cargos e de status quo.
          Florianópolis, março de 2009

          Ricardo Almeida

O espelho, o reflexo e a práxis

“É que narciso acha feio o que não é espelho”
Caetano Veloso
Historiadores dizem que os colonizadores presenteavam os nativos com um espelho quando pretendiam “domesticá-los”. Esse simples gesto continha dois significados contraditórios: por um lado, os “conquistadores” conseguiam alcançar os seus objetivos, e por outro, esses mesmos nativos conseguiam enxergar pela primeira vez os seus próprios rostos e os seus belos ornamentos. Portanto, também era um exercício espontâneo de reconhecimento da existência de si mesmo, como parte de uma identidade coletiva e cultural. Os espelhos também foram utilizados por diversos escritores como símbolo de algo que permite a revelação ou a descoberta de uma subjetividade, antes oculta. Já os antropólogos dizem que uma cultura somente se reconhece a partir de outra, de uma visão crítica e distanciada de si mesma, que toda cultura precisa de uma visão “de fora” para se ver plenamente. Por isso, é muito importante exercitar esse olhar de fora, para notar que os nossos hábitos, gestos e reações afetivas não são tão naturais assim, mas que são frutos de um processo histórico, coletivo, consciente e também inconsciente.
Ainda hoje é comum encontrarmos pessoas que carregam consigo essa herança colonial que faz com que queiram “colonizar” o Outro, partindo do princípio de que a sua cultura está mais correta, e que a do Outro contém “desvios”, “erros” etc. No entanto, ao mesmo tempo, começamos a entender e a aceitar que somos uma “civilização” só, com inúmeras culturas diferenciadas e que é preciso aprender a conviver com o Outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, das suas diferenças. Finalmente, estamos considerando a subjetividade de cada uma das culturas e a relação que os indivíduos estabelecem entre si, e também a considerá-las em relação às instituições, compreendendo as diferentes singularidades políticas, econômicas, sociais e culturais.
Na teoria, já assimilamos que somos assim, justamente pela complexidade subjetivo­-objetiva que adquirimos e pelas características da própria sociedade contemporânea, onde mantemos laços e relações reflexivas permanentes com outras culturas, em maior ou menor grau. Analisando desse modo, aos poucos vamos diminuindo consideravelmente os riscos de uma apologia a um dos lados, e evitando aquele velho e conhecido pensamento maniqueísta e/ou chauvinista do “nós versus vocês”. Dentro dessa ótica é que se apresenta o maior desafio político: repensar a nossa práxis e as relações que as nossas organizações (empresas, sindicatos, associações de bairro, centros acadêmicos, prefeituras e conselhos) mantêm entre si e com os seus países, objetivando um pensamento além fronteiras, sem perder a noção de identidade e de singularidade política e cultural de cada uma.
Neste processo de reflexão e de construção individual e coletiva, precisamos estar preparados para rir e para ouvir lamentos. Pessoas céticas tentarão nos desanimar de prosseguir nesta nossa investida. Muitos daqueles que deviam ensinar a ver e a transformar a realidade irão reproduzir suas reflexões acadêmicas, sem o mínimo de comprometimento prático. Precisamos entender que alguns pensadores irão preferir a confortável postura de críticos e de observadores do que “botar a mão na massa” e tentar transformar essa complexa realidade.
Durante os períodos de crise de paradigmas, a grande maioria das pessoas ignora que as mudanças tecnológicas também acabam destruindo conceitos e que é sempre preciso repensar essas mudanças na prática e na teoria. Foi assim no início da Idade Moderna, quando Cervantes e Shakespeare inventaram o humano ao nos propor uma aventura ética e coletiva. Foi assim na Primeira Revolução Industrial, quando Kant, Hegel, Feuerbach, Marx e Engels refletiram profundamente sobre o conhecimento e a condição humana, sob as amarras da nova sociedade que surgia. Também foi assim na Segunda Revolução Industrial, quando Freud, Jung, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Gramsci, Eric Fromm, W. Reich, H. Marcuse, R.D.Lang, Agnes Heller, Hannah Arendt e, mais recentemente, Paulo Freire mergulharam profundamente no inconsciente individual e coletivo para resgatar o papel do indivíduo oprimido na sociedade totalmente industrializada. Mesmo assim, muitas pessoas ainda ignoram que em quase todo o século 20, e principalmente a partir dos anos 70, a humanidade vivenciou diversas lutas por liberdades individuais e, definitivamente, o ser humano já não é o mesmo que existia tempos atrás. Nos últimos 500 anos, tivemos muitas lutas, buscas e conflitos. Milhões de nativos do continente americano foram massacrados a machadadas pelos colonizadores europeus, outros milhões de africanos foram arrancados de suas coletividades para morrerem como escravos nas nações além mar, duas grandes guerras mundiais destruíram várias cidades e acabaram com a vida de milhões de soldados e de civis inocentes. Apesar de tudo, ainda há quem afirme que “antes era bem melhor do que hoje”. Percebe-se que muitos ainda não entenderam o mal estar da cultura, e que ainda lhes falta muita reflexão e muita sensibilidade prática.
Neste longo período da história humana, aprendemos que o futuro não existe, mas que é nele que iremos viver. Concordo que a realidade se tornou muito mais complexa, mas também concordo que as pessoas de hoje possuem muito mais informações e conhecimentos do que antes. Se muitas daquelas nossas ilusões deterministas caíram por terra, é porque as nossas certezas já não existiam mais. Sabemos que a nossa imaginação ainda não chegou ao poder, mas também sabemos que conseguimos significativos avanços humanitários e democráticos. Apesar dos tropeços, erros, desistências e desilusões, uma dura guerra de posições e de movimentos continua existindo e a luta de alguns ainda permanece permanente. Se demos muitos passos atrás, agora já podemos dar dois ou três passos à frente.
Neste sentido, o nosso conceito de práxis deve apropriar-se dessa reflexão na nossa atividade cotidiana e perder-se nela, pois somente assim poderemos voar para o futuro como um bando de pássaros e não como folhas soltas no ar. Precisamos entender que hoje vivemos num tempo em que os conceitos e o conhecimento quebraram distâncias. Se antes pertencíamos a uma "tribo", hoje somos parte da "tribo planetária”. Se antes amávamos a natureza, hoje nos consideramos totalmente parte dela. Se só existe uma raça, hoje pertencemos à raça humana. Se agora eu estou aqui, daqui a pouco estarei na casa de cada um, em qualquer cidade e em qualquer país, via rede mundial de relacionamentos multifacetada. Portanto, em cada gesto, em cada ser humano, já é possível ver a humanidade inteira, como um jogo de espelhos que reflete diferentes tempos e identidades inter-relacionadas: um verdadeiro caleidoscópio humano que pode servir para construir uma nova prática transformadora, mas que também pode “domesticar” aquelas mentes que se bastam a si mesmas, hipnotizadas pelas novas tecnologias.
Portanto, mais uma vez, precisamos recuperar aquela emoção que nos motivou a construir os nossos “moinhos” e a realizar as nossas fantasias para tentar revelar este novo momento da história humana. Se o conhecimento, a criatividade e a ousadia já nos pertenceram no passado, agora podemos resgatá-los.  Quem sabe assim, poderemos conquistar a primavera remodelada dos nossos sonhos. Mas, tenhamos muita serenidade para definir o que fazer aqui e agora, com a máxima consciência prática/humana/crítica/histórica/sensível que adquirimos na nossa rica e contraditória experiência de vida.
Florianópolis, abril de 2010.
        Ricardo Marques Almeida

A Liberdade é Azul (uma sinfonia inacabada)

Publicado por Ricardo Almeida

“A Liberdade é Azul” (Bleu - 1993) é a primeira parte de uma trilogia filmada pelo diretor polonês Krysztof Kieslowski, que se completa com “A Igualdade é Branca” (Blanc - 1994) e “A Fraternidade é Vermelha” (Rouge - 1994). O filme reflete o pensamento inicial do diretor em busca de um humanismo solidário e fala das dificuldades existenciais e subjetivas encontradas para a sua realização. Toda sensibilidade do cineasta está revelada no texto, nos sons e no enquadramento das cenas iniciais e se manifesta ao longo de quase todo filme.

A reflexão mais profunda se dá através de personagens que se cruzam, mas principalmente na tragédia que ocorre na vida de Julie Vignon (Juliette Binoche) após a morte do marido - um maestro e conhecido compositor europeu - e da filha, num acidente de carro. Ao ficar sozinha, ela sente que sua vida perdeu o significado, passando a viver um tipo de liberdade egoísta e totalmente esvaziada de conteúdo.

As perdas são representadas por uma casa vazia e pela envolvente música composta pelo marido morto que ecoa na cabeça de Julie, sem deixá-la viver em paz. É que, num primeiro momento, ela ainda não percebia que existia uma relação intrínseca entre a sinfonia inacabada e a sua vida, também interrompida pelo trauma.

Na busca de um sentido para a vida, ela tenta ignorar o passado, mas aos poucos vai descobrindo que está cada vez mais presa a ele. Ou seja, por mais que ela tente fugir daquela realidade dolorida, sempre surgem sombras que a chamam para “conversar” com a sua verdadeira experiência de vida.

Com o passar do tempo e com a revelação de novos fatos, ela vai descobrindo que não deve mais fugir e que somente o diálogo com as suas lembranças seria capaz de concluir aquelas duas obras incompletas: a sinfonia inacabada e a sua própria vida. Aos poucos há uma mudança na sua postura e ela começa uma nova busca pela harmonia com aquela composição, e isso passa a ser fundamental para o resgate dos seus melhores sentimentos e a trazem de volta para a realidade. Ao permitir a existência de fortes laços com outras pessoas, ela consegue sentir novamente o amor e a amizade, e o passado que tanto assombrava seus pensamentos passa a ser o elo de interação com a possibilidade de uma nova vida.

As reflexões sobre a igualdade e a fraternidade aparecem silenciosamente neste filme e depois são aprofundadas nas outras partes da trilogia. Na obra completa (nas três cores) Kieslowski nos diz que a liberdade é vazia se não vier junto com a igualdade e a fraternidade. E vice versa. Ou seja, se alguém não consegue dialogar com outras pessoas é porque ela não aprendeu a compartilhar reflexões e os seus sonhos. Na prática estaria realizando “o nada”! Ou seja, o problema é quando não reconhecemos o que aprendemos e não compartilhamos os nossos afetos.

Assista ao trailer do filme:

http://www.youtube.com/watch?v=jmQ88PWzvR0

As invasões bárbaras - Por uma vida digna!

Escrito por Ricardo Almeida


Afinal, vivemos ou não num grande hospital? Essa é uma das perguntas que devemos fazer ao assistir este belo filme canadense. Se é verdade que as pessoas só se preocupam em prolongar a vida o máximo possível, sem dar um sentido digno para ela, essa metáfora do diretor Denys Arcand tem um alto grau de importância e de veracidade. Segundo essa visão, a grande maioria das pessoas já aceitou que a vida não lhes pertence mais e estamos delegando a responsabilidade sobre ela para outras pessoas. Hoje, para obtermos “saúde” (sic) e “felicidade” (sic), é só procurar a ajuda de médicos, psicólogos, psiquiatras, gurus, personal trainers, enfermeiras, políticos profissionais etc. etc. etc.

Ao mesmo tempo, o filme faz diversas referências às nossas atuais ameaças externas (inclusive no título) . Um exemplo foi o ataque às Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001, que significou um revide aos norte americanos, mas também uma demonstração clara e objetiva do novo tipo de barbárie que a civilização está vivenciando. Tudo com um certo sabor de vingança e com um grande apelo e prazer midiático. O mesmo vale para os ataques de Bush ao Iraque e para os massacres ocorridos durante a revolução chinesa de Mao Tsé Tung.

Segundo Arcand, a morte banal de milhares de civis e inocentes tem sido a tônica do mundo contemporâneo, assim como também a morte de pessoas desiludidas com a vida. Mas, propositalmente, o filme nos convence que o século XX, com todos os conflitos, contradições e tecnologias mortais (campos de concentração, câmara de gás, napalm, fuzilamentos, bomba atômica etc.) não foi o período mais violento do processo "civilizatório", pois na época das grandes navegações e descobrimentos, na nossa América do Sul e na do Norte, foram massacrados mais de 200 milhões de índios. Com um detalhe: "foram mortos a machadadas!" Vejo isso como um primeiro alento do diretor.

No geral, essa reflexão contextualizada e complexa serve como pano de fundo do filme, amarrada por um belo roteiro minuciosamente construído. Mas isso, dizem alguns, fica bastante submerso na trama, já que Arcand resolveu destacar simbolicamente o maior tabu da sociedade ocidental (lembrem que o tabu da sexualidade a nossa geração já conseguiu derrubar), que é a reflexão sobre a possibilidade de uma morte digna. Ou melhor: de ter uma vida digna... Quer dizer, daquilo que você quiser, desde que não seja solitário(a) num quarto frio deste "grande hospital". 
Eu sei que falar em morte aqui no ocidente é quase uma heresia, pois a maioria das pessoas prefere se iludir que irá viver para sempre. Sei também que a sociedade de consumo trata o ser humano como “uma coisa”, e que muitas "coisas" apenas possuem um valor monetário e de troca, como se fôssemos um depósito de informações, sem nenhum conhecimento e/ou sabedoria. As maioria das pessoas está vendo a vida apenas como um prazer infinito, sem sofrimentos! E nós embarcamos juntos dentro deste sofisticado furacão midiático e social.

       No filme competem harmonicamente essas duas visões simultâneas do diretor: a psicológica (individual) e a externa (contexto social), representada pelas ameaças que não dependem somente dos nossos desejos. Por exemplo, o personagem central  é um professor e intelectual de esquerda que está morrendo juntamente com o sistema de ideias que ele representa. De outro lado, está o seu filho yupie, que quer comprar tudo e todos (diretora do hospital¸ dirigente sindical, a garota usuária de drogas e alguns ex-alunos) para proporcionar uma morte mais tranquila para o pai. Só que nesse afã, ele acaba contratando uma jovem usuária de heroína para aplicar injeções da droga no pai, e assim, diminuir o seu sofrimento. Vê-se que o plano dá certo, mas, ironicamente, nessa convivência eles conseguem revisar os seus valores e ela descobre um significado mais digno para vida. Aliás, no final (dá para contar o final?) essa personagem, já se recuperando da dependência, vai viver numa casa herdada do professor, onde estão os seus livros (História e Utopia, O Arquipélago de Gulag e outros que eu ainda não conheço...), o que avaliza essa minha conclusão parcial. E por isso, talvez, esse trabalho tenha lhe rendido o prêmio de melhor atriz em Cannes, já que, para mim, todos estavam maravilhosos e convincentes.
Esse filme é fatalista e desesperançoso? Acho que a resposta se encontra no rumo que tomaram as duas jovens personagens femininas do filme. A primeira já foi citada, e a outra vem da filha do professor, que se revela quando esta diz via internet: “sou uma mulher feliz¸ achei o meu lugar. Não sei como você fez, mas conseguiu me transmitir o seu apetite pela vida“. A frase me pareceu como um sopro de esperança do diretor, pois ela foi dita num veleiro e tendo um imenso oceano ao fundo. Vi como uma analogia ao nosso futuro, cheio de dúvidas e de incertezas. Ainda mais que o diretor dedicou o filme à sua filha.

          Embora Invasões Bárbaras proponha diversas reflexões importantes, o momento que mais chama a atenção do grande público é quando o personagem terminal diz tranquilamente para os seus velhos amigos e amigas: “Eu tive muito prazer em viver essa modesta vida na compainha de vocês, queridos amigos. É o sorriso de vocês que vou levar comigo”. Ou seja, ele consegue resgatar as suas principais relações e ter uma despedida digna do filho e dos(as) amigos(as), superando a dificuldade em abraçar e ouvir diferentes pontos de vista. Desse modo, a sua morte também não foi ocultada de ninguém.
  Dizem que quando a gente está à beira da morte, passa um filme na nossa cabeça. E quando um sistema de ideias morre, não deveria acontecer o mesmo? Acho que isso dependeria da revisão e da destruição dos dogmas e tabus que nos imobilizam, assim como da mudança de um ponto de vista, do propósito e dos valores.

          Veja o trailer do filme no link:
NOS BASTIDORES: O diretor disse em entrevista que a civilização está declinando, pois "o mundo de hoje é caracterizado por uma burrice total”. Nesse ponto eu não concordo. Acho que ele esqueceu que na Idade Média, na escravidão do século 19 e em outras épocas obscuras, a humanidade (como um todo) não tinha tanta informação e nunca esteve tão democratizada como hoje. Para mim, o que acontece é que não sabemos lidar com tanta INFORMAÇÃO e não entendemos quase nada sobre o papel do Estado, dos governos e da sociedade civil. Assim, nos sentimos ORFÃOS e permanecemos PERPLEXOS e confusos diante desta nova realidade. Mas concordo que o conhecimento cientificista nos armou muitas armadilhas dogmáticas (“ismos”) e acabamos substituíndo o “egoísta divino” pelo “eu egoísta” e depois houve a volta do “nosso egoísta divino”. Somente com a MORTE dos PARADIGMAS que nortearam a nossa geração é que fomos capazes de ver a vida como uma "grande possibilidade" e não mais como uma "certeza". O problema é que alguns "manuais" e discursos ainda são deterministas e não revelam as contradições deste mundo CAÓRDICO.
Uma observação: Quem quiser aprofundar mais sobre a dignidade e a superficialidade da vida contemporânea pode assistir o fraquinho Declínio do Império Americano, do mesmo diretor, para identificar alguns prazeres egoístas da sociedade moderna ocidental.