Lembranças dos cinemas na fronteira

Eu tinha um jipe de pedal, daqueles com uma estrela no capô, e que foi presente de Natal. E que presente! Como a gente morava na Salgado Filho e tinha uma enorme ladeira, era comum a gurizada se jogar de carrinho de "rolimã" ou com rodas de madeira. Mas o jipe andava a toda velocidade ladeira à baixo, e muitas vezes, é claro, eu capotei. 

Ainda pequeno, tive experiências inesquecíveis, como o futebol no pátio da casa de minha avó ou nos Bombeiros, a Páscoa na granja que meu pai arrendava para plantar e produzir, as revistas em quadrinhos do Gato Felix e dos Sobrinhos do Capitão, e daquela gurizada que vivia pelos boeiros e nos campinhos de futebol perto do Irajá, do Fluminense e do Estadual. Ainda não havia essa mania de proibir as crianças de correrem algum tipo de risco. Mas a lembrança que mais me emociona são as imagens que guardei das matinés do Seu Hermes. A gente ia pelos trilhos, passava pelo riacho, subia um descampado e chegava no cineminha mais ou menos improvisado. Tinha gente que sentava em bancos postados na diagonal da tela. Os filmes, a maioria em preto e branco, eram vistos como dava, mas sempre nos entusiasmavam.

Como eu era pequeno, os meus irmãos mais velhos me levavam para vibrar com o Randolph Scoth, o Johnny Weismuller, o Chaplin, o Buster Keaton, o Stan Lauren e o Oliver Hardy. Assim, sem saber, víamos filmes raros, que já não passavam nos outros cinemas daquelas duas cidades.

Acho que na minha infância, devo ter visto milhares de filmes, sendo que alguns deles, repetidas vezes. O cinema era a grande novidade da época, já que ainda não havia televisão (muito menos celular, smartphone e internet) naquela fronteira, que teve oito salas de cinema nos anos 70.

Depois daqueles anos eu assisti os principais clássicos do suspense, da comédia e muitos épicos, do faroestes aos romances. Lembro sempre do Spartacus, que eu nem sabia que era do Stanley Kubrick, e também do Laurence da Arábia, que eu também não sabia que era do David Lean. Às vezes saíamos do Internacional no intervalo do segundo para o terceiro filme da matiné e corríamos para entrar sem pagar no Grand Rex. Assim, dava tempo de pegar o último filme que passava. Entrávamos na parte de cima, no mezanino, quando recém ficara escuro e o único lanterninha ainda estava distraído acomodando as pessoas.

Como havia censura e repressão no Brasil, a gente assistia quase todos os filmes proibidos do lado de lá. Vimos Laranja Mecânica, Sacco & Vanzetti, Zabrieskie Point, A Classe Operária vai ao Paraíso, Mimi, o Metalúrgico... e tantos outros.

Ao lembrar, só tenho que agradecer ao Seu Hermes e aos cinemas de Livramento e Rivera por terem me proporcionado tanta alegria e tanto sentimento de liberdade.

Veja a seguir o vídeo que foi produzido pela Graffitae Artes, para a inauguração do projeto Estação Cultura, das Secretarias de Cultura e de Turismo de Livramento. O roteiro é meu e parte da edição teve a minha colaboração.

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