Depoimento para o projeto Memória do Movimento Estudantil Universitário Gaúcho no período da redemocratização 1977 - 1985, criado e desenvolvido pelo IMA - Instituto Mário Alves, de Pelotas. Acredito que estas reflexões contribuem para entender algumas contradições da esquerda que ainda persistem neste novo período da história brasileira. Lamento, mas eu errei o nome da minha organização à nível nacional: era Caminhando e não Movimento. Aqui no RS era Resistência e a minha desmemória não me traiu :) Espero que vocês gostem... Abraços.

A vida é bastante contraditória e as nossas ideias, muitas vezes, não correspondem a suas variações. Por isso, quero compartilhar algumas reflexões minhas e de outras pessoas, a partir de textos, fotos, vídeos, poemas e depoimentos que revelem essas contradições da vida. Quem sabe assim, se crie e recrie livremente uma infinita constelação de olhares em movimento.
Um selfie com Mujica
“Não
é só uma mudança do sistema, é uma mudança de cultura, é uma cultura
civilizatória. E não tem como sonhar com um mundo melhor se não gastar a vida
lutando por ele. Temos que superar o individualismo e criar consciência
coletiva para transformar a sociedade.” – José
Pepe Mujica
Quantas pessoas você conhece que admiram o ex-presidente
Mujica? E agora, me responda: quantas dessas pessoas defenderiam as ideias de Mujica?
Não estou me referindo à sua situação social e nem às escolhas de vida que José
Pepe Mujica fez após passar 12 anos nas prisões uruguaias. Neste momento de
crise ética e política, precisamos refletir sobre a sua dignidade e também
sobre o exemplo que ele vem dando para todos nós ao falar de princípios e de
valores não monetários.
Poucas pessoas sabem que Mujica gosta de ler Sêneca (50
A.C) e diversos livres pensadores do passado e do presente, e pouquíssimas se
dão conta de que ele também é fruto de um longo processo histórico vivido pelo
seu país, o Uruguai. Por exemplo, lá as universidades foram criadas muitas décadas
antes do que as brasileiras; há quase cem anos, na Constituição de 1917, o
Estado foi separado da influência da Igreja; o presidente colorado José Batlle
y Ordóñez incentivou um verdadeiro laicismo radical no país e, desde lá não se
vê símbolos cristãos nas câmaras de “ediles”
(vereadores), nas salas de aula, nos tribunais e nem nos hospitais da rede
pública. Todas as religiões são respeitadas e, na posse dos presidentes o
juramento é em nome da Constituição uruguaia e não da Bíblia. Isso, por si só,
já revela a seriedade e a radicalidade da democracia republicana construída pelos hermanos.
Mas tem mais: os uruguaios aboliram a escravidão
quarenta e seis anos antes do que o Brasil; o país foi o pioneiro ao permitir o
divórcio por iniciativa da mulher em 1913 enquanto que a lei brasileira foi
aprovada apenas no final dos anos 70 (cinquenta e sete anos depois); as
mulheres uruguaias conquistaram o direito ao voto em 1917 e as brasileiras
somente em 1932 (quinze anos depois). Recentemente eles conseguiram avançar
ainda mais nos seus direitos civis, com a legalização da relação entre pessoas
do mesmo sexo, com a não punição à prática do aborto até a 12ª semana de
gestação e se tornaram o primeiro país no mundo a comercializar a marijuana pelo
próprio Estado, como política de saúde e de combate ao tráfico de drogas. Nós,
brasileiros, em pleno século 21, ainda estamos enfrentando o conservadorismo político
e religioso que invadiu o parlamento, as prefeituras, as delegacias de polícia,
milhares de residências e milhões de mentes desesperadas e solitárias.
Do ponto de vista do sistema político,
os partidos uruguaios são seculares e o Frente Amplio, fruto da coalizão de
várias organizações e de cidadãos independentes, reúne democraticamente toda a
esquerda uruguaia desde 1971 e governa aquele país desde 2005. Essa maturidade
política do seu povo dificulta as manobras espúrias e o surgimento de uma
bancada que imponha as "leis
divinas” e/ou defenda o monopólio da comunicação. José Pepe Mujica e quase toda
a torcida do Penharol e do Nacional sabem disso!
Portanto, um selfie
com Mujica deveria levar em conta que além de admirá-lo (o que não está errado!)
todo fã precisaria compreender o que ele e o seu povo representam. Os brasileiros,
por exemplo, deveriam valorizar os postos Petrobrás e evitar as multinacionais Esso,
Shell e Texas Co. Ao comprar produtos orgânicos de produtores locais estariam
reconhecendo a importância de fortalecer as cadeias produtivas regionais etc e
tal. Enfim, todas as ações do dia-a-dia estariam sendo consideradas como
atitudes políticas, ou melhor, adquirindo um sentido humano, local e universal.
Ou seja: a vida de qualquer pessoa está cheia de
provações individuais e coletivas, principalmente para aquelas que assumem um
cargo público ou fazem parte de um centro estudantil, desde um policial da
esquina até um chef de cozinha, de um
dirigente partidário e muito mais de um governador. Pois é numa dessas situações
que a concepção de poder se manifesta e os indivíduos são testados. Nunca
apenas pelo discurso ou nas postagens de ocasião. Ou melhor, se quisermos saber
o verdadeiro grau de liberdade que um homem ou uma mulher defende, basta arrancar-lhes
a sua concepção de mulher, ou como cada um(a) se refere ou se relaciona com as
mulheres negras e/ou indígenas. E mais: perguntar-lhes se têm algum preconceito
homoafetivo ou de religião.
As concepções de poder estão por toda parte, mas muitas
vezes algumas faces e representações ficam ocultas, e se manifestam apenas
quando alguém assume um cargo ou uma função coletiva. Nas redes sociais
qualquer um(a) se sente o rei ou a rainha da cocada, mas é na vida real que a
porca torce o rabo. Por isso, é bom exercitar a capacidade que cada um(a) tem de
solidariedade e de fraternidade, sem perder o senso de justiça, pois o mundo
que queremos construir é de homens e mulheres livres e fraternos, e não de
pessoas agressivas e odiosas. Não adianta ficar adjetivando os demais ou tratando
o Mujica como uma estrela de rock, pois o nosso desafio é construir uma
constelação de organizações autônomas com a máxima convergência possível dos
olhares e dos saberes que aprenderam a ser solidários e propositivos.
Compartilhar o poder – micro e macro - não é para
qualquer um(a). Ainda mais numa sociedade que segue gerando homens e mulheres
individualistas e egoístas, em que muitas pessoas já perderam a fé na
humanidade e recorrem ao divino, às verdades absolutas ou ao isolamento, pois
perderam a crença nos seres humanos, que são elas mesmas. Às vezes é preciso
passar por situações difíceis e adversas para se colocar no lugar de outra
pessoa, e para entender a subjetividade e objetividade de cada cultura e moral
existente. Não queremos apenas uma mudança do sistema, mas da
cultura que dá sustentação a este sistema falido.
O nosso futuro será sempre construído por meio de
passos objetivos, firmes e consistentes, pois esses sim serão lembrados daqui a
dez, vinte e cinquenta anos, e não por aqueles que gritam mais alto ou falam
somente frases genéricas. São as atitudes individuais e, principalmente as
coletivas, que permitirão gerar novas reflexões bem mais complexas e que irão nos
proporcionar outras dimensões da consciência. Por exemplo: é preciso
compreender que se o conservadorismo cultural e político vencer o movimento
contra o golpe no Brasil, en breve Mujica y nuestros queridos hermanos uruguayos
serán agredidos como estamos siendo nosotros, los brasileños. Portanto, temos que superar o regionalismo e o nacionalismo
até criar uma consciência planetária que seja capaz de transformar radicalmente
a nossa sociedade.
Porto
Alegre, 18 de maio de 2016.
Ricardo
Almeida
As crises e a síndrome das capivaras
"Ele
não se apercebe de que há com ele algo de errado
porque
uma das
coisas que nele andam erradas
é não se
aperceber de que há com ele
algo de
errado
portanto
temos que
ajuda-lo a aperceber-se
de que o
fato de não se aperceber
de que há
com ele algo de errado
é uma dessas
coisas
que nele
andam erradas..." - R.D. Laing - Laços
Aprendi que um sistema baseado no mercado e em capitais
especulativos entra em crises cíclicas (ou em ondas), assim como a noite vem depois do dia, que chove mais em determinadas épocas do ano e que surgem temporais devastadores em algumas regiões do planeta.
Esta crise brasileira de 2014, que começou no mundo inteiro em 2008, me fez lembrar que nos anos 70 ou 80 dezenas de capivaras foram encontradas mortas próximo à Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul. E que, alguns meses depois os jornais anunciaram que uma equipe de cientistas conseguiu desvendar a origem daquele estranho fenômeno. Diziam eles: com a escassez de alimentos na região, as capivaras acabaram comendo umas às outras.
Esta crise brasileira de 2014, que começou no mundo inteiro em 2008, me fez lembrar que nos anos 70 ou 80 dezenas de capivaras foram encontradas mortas próximo à Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul. E que, alguns meses depois os jornais anunciaram que uma equipe de cientistas conseguiu desvendar a origem daquele estranho fenômeno. Diziam eles: com a escassez de alimentos na região, as capivaras acabaram comendo umas às outras.
Este exemplo do reino animal revela que uma crise humana também pode ser
analisada desse ponto de vista — da escassez — mas que existem outras maneiras de analisar uma crise. Ou seja: ela pode ser fruto de uma crise ética, ou de uma crise de
consciência, da crise de valores e até de uma crise da criatividade, como, por
exemplo, uma falta de entendimento de que é preciso realizar um pacto entre uma
parte da sociedade para garantir direitos e avançar naquilo que as
circunstâncias históricas permitem (aquilo que Antonio Gramsci, que lia Hegel e Engels, chamou de formação de um Bloco
Histórico de classes).
Uma questão importante para a compreensão das crises é a percepção de
que elas não possuem uma causa única e nem acontecem de uma forma isolada, umas
das outras. Ou seja, que de uma forma quase invisível elas acabam promovendo
uma escalada de ações e de reações, de explosões e até de algumas atrocidades
que muitas pessoas não querem saber os seus motivos. Numa sociedade acostumada
com a banalização da violência, do medo e do ódio, é comum encontrar pessoas
que elogiam a força bruta e gostam de provocar a inteligência das pessoas mais
sensíveis. Como nos filmes e seriados de Hollywood, cidades inteiras começam a
ser ameaçadas por “malucos" e reagem apavoradas, com a intenção de
serem salvas por um super-herói ou por um “Salvador da Pátria”.
Essas pessoas não conseguem ultrapassar a fase infantil das histórias em
quadrinhos e caem — ingenuamente ou não — em velhas e conhecidas armadilhas.
Elas ainda sentem medo quando o diabo, o bicho-papão, o cientista maluco, o
Jason, o minotauro, os lutadores de UFC, os Malafaias e os Bolsonaros aparecem
nas redes sociais ou na televisão. Como se fossem crianças esquecem que possuem
uma capacidade de aprender e a elaborar raciocínios mais complexos, e assim
reproduzem o medo e valores absurdos nas escolas, igrejas, redes de TV,
jornais, blogs, revistas, amigos e nas famílias.
Elas formam e contribuem para a criação de uma grande massa de
pessoas desinformadas, que não entendem as crises de escassez econômica, ética, moral e
política — e passam a procurar um culpado pela sua crise particular.
Como na Alemanha nazista e na Itália fascista, na maioria das vezes escolhem
alguma cultura/etnia ou liderança política, partidos políticos e organizações
sindicais, movimentos sociais e até a própria justiça, para criticar e
desmoralizar, desde que essa não lhes seja favorável. O direito a julgamento é
ignorado, pois elas não estão dispostas a ouvir o argumento dos acusados e
elogiam delações de ladrões — tipo Barrabás —, acusações levianas e propagam
essas suspeitas etc.
No Brasil, pessoas com mais de 30 anos de idade já atravessaram crises semelhantes, mas isso não quer dizer que elas aprenderam alguma coisa com essas experiências. Poucas lembram, mas não falam,
até onde uma crise aguda pode levar as multidões. Aquelas que não reconhecem as
crises cíclicas - independente de posição ideológica - costumam agredir as que
se revoltam contra as crises, e isso é um triste sinal de que nenhuma delas
aprendeu com os livros e com as crises anteriores.
E o que isso tudo tem a ver com as capivaras e a escassez de alimentos? É que muitas pessoas vivem somente para o presente, não entenderam o passado e, assim, não conseguem imaginar um cenário futuro. Por se preocuparem apenas com o presente, nunca param para refletir e aprender sobre os motivos da crise que estamos vivendo. Sentem medo do futuro, pois em função da escassez, da alta dos preços e das suas limitações intelectuais (por que não?), o futuro acabou se tornou algo inseguro e incerto.
Não querem saber, por exemplo, se os freeshops de Artigas,
Rivera, Acegua, Río Branco e Chuy, no Uruguai – cuja maioria é de empresas
multinacionais - estão vazios em função da subida dos juros nos EUA e que houve
uma fuga do capital especulativo para aquele país, pois lá essas mesmas
empresas lucram muito mais. Não entendem que muitas empresas e os banqueiros
internacionais estão interferindo na cena política nacional para defenderem os
seus velhos privilégios, pois o velho poder econômico está sendo ameaçado. E
quando um país entra em perspectiva de tornar-se uma das grandes potências
mundiais, aí é briga para “cachorro grande” (ou capivara grande).
Os “gerentes” nacionais utilizam todos os meios possíveis para gerar
pânico e histeria no cotidiano da população local, desde subir o preço dos
alimentos ou desabaster as prateleiras dos supermercados, até bombardear
as famílias com notícias negativas durante meses e meses, por meio dos jornais e dos canais de televisão.
Se for véspera de um período eleitoral, aí sim que o bombardeio se
tornará insuportável, ao ponto de gerar e propagar irritações e
histerias nos bares, nos lares e nas redes sociais.
Neste contexto de crise, a luta contra a corrupção sempre ressurge, e se torna um
prato cheio de ódio e de irracionalidades, com ameaças ao básico direito de
“presunção da inocência” de uma pessoa. Como muitas estão desesperadas e
"ameaçadas" pelas crises, já não param para pensar que corruptos podem estar querendo se passar por "bons meninos", que a sonegação
de impostos também representa um desvio de verbas que poderiam ser destinadas à saúde,
à educação e a outras áreas importantes para a própria população. Acreditam que
quem está no governo possui todo o poder de mudar “as coisas”... Aprenderam na
escola que existem três poderes, mas acreditam mais na televisão, pois ainda estão
descobrindo as funções do Congresso e do Judiciário. Repetem em coro: "não gosto de política", “a política é uma coisa ruim” e "nunca precisei dos
políticos". No período de fartura o mérito era todo delas, mas no de crises é do governo de plantão e dos políticos. Mesmo assim, apesar de tudo, a vida sempre será um
processo vivo e dinâmico que ensina as pessoas que resolvem compartilhar
suas experiências e prestam atenção aos fatos e a repetição dos fenômenos. Por isso, não dá para desistir!
Dá para aprender que “as coisas” e as circunstâncias mudam! Por exemplo: se antes os banqueiros e
empresários compravam políticos e sindicalistas para defenderem as suas pautas
políticas, agora eles já estão atuando no centro das disputas – é caso do Paulo
Skaf, empresário e presidente da FIESP, candidato pelo PSB ao governo de São
Paulo, em 2010, de Donald
Trump, empresário, investidor e personalidade da mídia norte-americano, e
candidato a presidente dos Estados Unidos nas eleições de 2016, e também do recém eleito empresário-presidente da Argentina, Maurício Macri. Ou
indicando os seus representantes para fazer parte dos governos – como é o caso
do Joaquim Levy, diretor-superintendente do Bradesco Asset Management (Bram),
como ministro da Fazenda do Brasil. Todos apostam na alienação de setores das
“classes médias”, que vacilam, com medo de não conseguir pagar as dívidas ou de
perder o que conquistaram, sempre com o apoio de setores mais conservadores das
igrejas e da sociedade.
Como foi visto, com a escassez dos alimentos, a alta do dólar, o aumento
do valor das prestações do carro e da casa própria, assim como da diminuição do
consumo, essa crise política e econômica também gera uma
crise ética e cultural, e que sua compreensão é bem mais complexa do
que uma simples partida de futebol, de uma disputa por siglas partidárias e/ou
por crenças e valores religiosos. Essas ondas ressurgem de tempos em
tempos e é preciso mergulhar no fundo do fundo do fundo das crises “cíclicas”
e/ou “em ondas” do sistema capitalista para conseguir superá-las.
O desafio de quem não quer alimentar o ódio, o pânico e o canibalismo
político-cultural é ultrapassar a fase da crítica pela crítica e também deixar
de ser pautado pela grande mídia ou por comentários provocativos nas redes
sociais. Esses medos, assim como as ameaças e as intrigas, perderão peso quando
pessoas alegres e propositivas tomarem a iniciativa. Não adianta dizer que tal
pessoa não entende isso ou aquilo, pois o problema dela é exatamente este: ela
não entende o que está se passando em sua volta e prefere orar apenas pela sua
prosperidade individual (é um egoísta divino).
Não há nada de errado em se indignar e criticar quem está incentivando o ódio e a
alienação das pessoas, mas ficar apenas adjetivando a alienação, se vangloriando para os
amigos mais próximos, ou postando provocações, desilusões e lamentos no
Facebook deveria ser considerado como uma atitude de um(a) cidadão/cidadã ultrapassado(a) no
seu próprio tempo. Estamos vivendo um momento da história com muitas informações disponíveis e, por isso mesmo, está mais
do que na hora de compartilhar conhecimentos com pessoas que não pertencem aos mesmos
círculos de amizade, pois não serão os mais rápidos que sobreviverão,
nem os mais fortes, e sim os que ousarem, forem criativos e demonstrarem uma
grande capacidade de argumentação, de convencimento e, principalmente, de
organização.
Ricardo Almeida
Porto Alegre, março de 2016.
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