As regras do jogo.

                                                                                                           Cómo hacerte saber que siempre hay tiempo?
                                                                                                           Que uno tiene que buscarlo y dárselo...
                                                                                                           Que nadie establece normas, salvo la vida...
                                                                                                           Que la vida sin ciertas normas pierde formas...
                                                                                                           Desde los afectos, de Mario Benedetti

    Quando Felipe Melo pisou na perna do adversário sem motivo algum e foi expulso nas quartas de final do Mundial de 2010 (reveja a cena aqui), a seleção da Holanda ganhou o jogo e eu xinguei a tela da TV até aquele jogo terminar. Dias depois, quando Luis Suarez, da seleção uruguaia, colocou a mão na bola dentro da área e foi expulso aos 46 minutos do segundo tempo (reveja a cena aqui), eu vibrei de alegria, pois percebi que ele agia consciente das regras do jogo e estava utilizando o último recurso que restava.

    Eu sei, e todos os brasileiros sabem que o jogo de futebol tem as suas regras... O problema é que nem todos sabem que numa sociedade organizada também existem pactos escritos para garantir os direitos e os deveres de cada pessoa, das organizações, dos políticos, dos juízes etc. Portanto, entendo que, nós brasileiros, precisamos repensar algumas questões básicas para conviver em sociedade: será que existem regras claras em todos os jogos que estamos jogando? Devemos defendê-las ou devemos lutar para modificá-las? Devemos agir apenas orientados pela fé e pela emoção ou existem outras formas racionais de interagir numa situação adversa?

    Tenho certeza de que o jogador uruguaio estava muito emocionado ao botar a mão na bola. Ainda mais que o adversário acabou errando o pênalti e o Uruguai ganhou aquela partida também nos pênaltis. Sei disso porque eu nasci lá na fronteira (com o Uruguai) e convivi, joguei futebol, basquete e vôlei com eles por muito tempo. Portanto, reconheço que naquele gesto havia muita racionalidade, pois além da paixão por LA CELESTE, a educação que eles ainda recebem é bem menos "técnica" do que a nossa.

    Lá, por exemplo, as universidades foram criadas muitas décadas antes que as nossas. Na Constituição de 1917 o Estado foi separado da influência da Igreja e o presidente colorado José Batlle y Ordóñez incentivou um verdadeiro laicismo radical no país (lembrem que naquela época a Igreja Católica era a única que tentava influenciar e disputar a esfera pública). Portanto, há muito tempo não se vê símbolos cristãos nas praças, nas salas de aula, nos tribunais e nem nos hospitais da rede pública. No juramento oficial de posse os presidentes não dizem “eu juro por Deus” pois todos se comprometem a seguir e defender unicamente os parâmetros da constituição uruguaia e a proteger os interesses da nação.

     Diferente do Brasil, alguns partidos uruguaios são seculares e o Frente Amplio, que reúne a esquerda uruguaia foi criada em 1971. Esta maturidade política também dificulta as manobras espúrias e o surgimento de uma bancada que defenda as "leis" divinas.

     Quais foram as consequências disso? Os uruguaios aboliram a escravidão quarenta e seis anos antes que o Brasil. As mulheres uruguaias conquistaram o direito ao voto em 1917 e as brasileiras somente em 1932. O país foi o pioneiro ao permitir o divórcio por iniciativa da mulher em 1913 enquanto que a lei brasileira foi aprovada apenas no final dos anos 70. Enfim, recentemente eles conseguiram avançar ainda mais nos seus direitos civis, com a legalização da relação entre pessoas do mesmo sexo, com a não punição à prática do aborto até a 12ª semana de gestação e se tornaram o primeiro país no mundo a comercializar a marijuana pelo próprio Estado. Nós, brasileiros, em pleno século 21, ainda estamos enfrentando o conservadorismo católico e evangélico que invadiu o parlamento, e participamos de algumas passeatas para tentar mudar as velhas regras desse jogo.

     Mas, será somente por isso que não avançamos tanto quanto los hermanos uruguayos?

    Eu me inclino a pensar que somos pouco objetivos (pragmáticos) nesta luta cultural e política. Os uruguaios são educados desde cedo a considerar mais o coletivo ao invés de priorizar soluções (sic) individuais. Uma regra deles, que seria muito polêmica no Brasil, é o uso obrigatório de aventais brancos nas escolas. Segundo ela, isso evita que uma criança se veja como uma “princesinha” ou um “reizinho” perante os demais. Desde cedo eles aprendem que as salas de aula e os colégios não são lugares apropriados para um desfile roupas e de produtos. Gostemos ou não, me parece que eles incentivam (ensinam) as crianças a prestar atenção no conteúdo e não apenas na aparência. Por outro lado, enquanto no Brasil as crianças e adultos transformam a internet num verdadeiro cassino, lá o Plano Ceibal, além de entregar um computador para cada aluno, também se preocupa em selecionar e indicar conteúdos para as crianças acessarem, junto com suas famílias e os moradores do bairro em que vivem.

    Também entendo que nós estamos sucumbindo por excesso de palavras (sem ações concretas) e de uma cultura formada para assistir ao espetáculo. Por isso, eu considero de fundamental importância analisar e refletir sobre o papel da educação formal e informal (aí eu incluo a relação familiar, a literatura produzida, a política e as novelas de TV), pois através delas podemos identificar as formas de interpretação e representação da nossa realidade. Precisamos reconhecer e inserir os elementos subjetivos e simbólicos na nossa análise, para perceber como os diferentes atores da nossa sociedade representam a sua visão de mundo. O ideal seria que todos os brasileiros abandonassem aquela velha mania de ser “técnico” da partida e começassem a jogar o jogo  além de considerar as suas regras, é claro! Pois, de nada vale contrapor a todo custo a opinião do “outro”, apenas para provocá-lo. A nossa realidade já é diversificada, cheia de contradições e de influências étnico-culturais para ser reduzida a uma homogeneidade política e cultural.  No fundo, precisamos reconhecer o descompasso que ainda existe entre a mentalidade colonial europeia que nos foi imposta e a mentalidade mítica/mágica das culturas indígenas, africanas e orientais que sempre estiveram por aqui, pois essa conjunção entre a razão e os mitos será o fio da meada para a compreensão da nossa nova sensibilidade.

    Não podemos seguir formando gerações e gerações de pessoas que só pensam em soluções egoístas, e criando (?) os nossos filhos e netos em quartos fechados. Não podemos seguir assistindo o incentivo ao consumo como uma regra nos programas da TV, em muitos templos religiosos e até em planos governamentais. Ao mesmo tempo, precisamos combater a apologia ao insignificante que se tornou prática comum em diversos programas de rádio, de televisão e também na internet. Pois, com essa guerra de des-in-formação os brasileiros estão ficando cada vez mais confusos e desorientados. Os jogadores de futebol, a seleção e os seus times são apenas expoentes dessa educação desorganizada e individualista que estamos reproduzindo por gerações após gerações.

    Definitivamente precisamos compreender que os desmandos da política não desaparecem como num passe de mágica, que o Paraíso e a Terra Prometida são criações de um pensamento idealista, que servem apenas para caminhar. Que nós teremos aquilo que encontrarmos dentro de cada um de nós. Por isso, sem vacilar, eu aconselho um rápido passeio no paizito hermano para desfrutar um pouco das suas praias, mas também para mergulhar de cabeça na sua cultura, na sua política e na sua história. Afinal, todos nós sabemos que este nosso jogo não tem fim... Ou então, é ficar na arquibancada torcendo para que algum mecenas ou juiz faça a sua leitura das regras do jogo.

7 comentários:

  1. Gostei desse passeio histórico comparativo das duas sociedades!

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  2. Texto muito bom, com observações consistentes e, para mim, texto emocionante, uma vez que trata daquele universo da nossa fronteira onde comparamos cotidianamente essas duas faces da alma, do mundo latino-americano. Parabéns, Ricardo.

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    1. Obrigado, Suzana. Nosotros da fronteira somos assim "medio y medio". Abraços/Abrazos

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  3. Vivo a 15 anos no Uruguay e sei bem como sao essas diferenças com a sociedade brasileira.
    Aqui as pessoas tem um sentido de cidadania muito grande.

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    1. Prezada Ana, então tu poderias descrever um pouco sobre o significado desta "cidadania". O que? Onde? Quando? Obrigado pela contribuição. Abraço/Abrazo. Ricardo

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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