A fronteira não é um limite


Tolerar a existência do outro
 e permitir que ele seja diferente,
ainda é muito pouco.
Quando se tolera,
apenas se concede
e essa não é uma relação de igualdade,
mas de superioridade de um sobre o outro.
Deveríamos criar uma relação entre as pessoas,
da qual estivessem excluídas
a tolerância e a intolerância.”
José Saramago
Nasci em Santana do Livramento, um município que se situa numa fronteira política bem ao sul do Brasil (al norte del Uruguay). Durante a minha vida, consegui ultrapassar outras tantas não-políticas, pois a inquietação sempre me levou a fronteiras psicológicas, conceituais, científicas e até religiosas. Nessas viagens do pensamento, aprendi, por exemplo, que em todas elas não há um obstáculo intransponível, mas uma nova possibilidade de interação, como se fossem marcos de referências para novos universos que se abrem, um para o outro, misturando conhecimentos, sonhos, falas, hábitos, arquétipos e costumes. Pois, nesse espaço-tempo foram se revelando e se perpetuando vários universos mezclados e caórdicos, onde o caos e a ordem convivem em quase perfeita harmonia.
Sei que Livramento e Rivera sempre ocuparam um território com muitas práticas comuns interessantes, mas também sei que o mundo pouco conhece essas práticas. Talvez conhecendo, pudesse evitar tantos novos conflitos étnicos e culturais que estão se proliferando pelo planeta. É que lá na fronteira, existem muitas identidades e singularidades que se mezclan casi sin percibir sus diferencias culturales. Em dezembro passado estive por lá e assisti ao lançamento do livro Retratos do exílio: solidariedade e resistência na fronteira, do santanense Marlon Aseff e também a uma homenagem para o Carlos Urbim, outro escritor conterrâneo, que nos disse que “as pandorgas se cruzam naquele imenso céu azul, sem perceber que estão cruzando fronteiras”. O escritor argentino Jorge Luis Borges também já fez referências a esse território tão contraditório, e José Hernández começou a escrever o seu Martín Fierro do lado de cá da linha política imaginária. Mas, o que mais existe de interessante por lá?

Desta vez, percebi que ainda existe um sentimento profundo de convivência e de solidariedade junto com fortes contradições culturais que latejam incessantemente na cabeça das pessoas. Muitas sequer imaginam que as melhores universidades do planeta estão debatendo e pesquisando o conceito de alteridade, que é a aceitação do Outro enquanto diferente de mim mesmo. Aceitação do meu modo de ser, considerando o modo de ser do Outro. Ou seja, estudam aquilo que o povo dessa fronteira pratica no seu dia-a-dia sem quase se aperceber.

Como a Europa e uma boa parte do mundo estão vivendo novos conflitos étnicos, políticos e culturais, a intolerância se tornou visível nos países que ocorrem novos processos migratórios. Antigas colônias não aceitam a globalização apenas da matéria prima ou dos produtos, e também querem globalizar a mão-de-obra e a inteligência que ficou descartada pelos seus novos e antigos usurpadores. Então migram do Oriente, da África e da América em busca de melhores condições de vida e de um novo tipo de convivência étnico-cultural.

Sei que muita gente ainda resiste a provar o sabor dessa estranheza cultural. Mas isso é fruto da educação que tivemos... Ou melhor, das belas mentiras que nos transmitiram “educadamente” nos primeiros anos de vida. Também creio que nós brasileiros precisamos observar melhor e valorizar a nossa rica e diversificada convivência multicultural: do kibe à caldeirada, da paella à feijoada, dos brotos de bambu à pizza napolitana. Pois, tudo isso cabe numa boa mesa! Não é? Por que não?
 

Um comentário:

  1. Gostei do que li.Sou sua conterrânea e sei do que está falando!
    um abraço,

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