Os outros espelhos enterrados



 “Só então cheguei aqui e descobri
Que sempre estive aqui...”.
Bebeto Alves/ Humberto Gessinger
                            “E tudo isso foi no mês que vem...”.
Vitor Ramil
Los espejos están llenos de gente.
Los invisibles nos ven.
Los olvidados nos recuerdan.
Cuando nos vemos, los vemos.
Cuando nos vamos, ¿se van?
Eduardo Galeano

Culturas que se afirmam com base em discursos dicotômicos são um fenômeno mundial. Acontece sempre que um grupo cultural, um povo ou uma nação ressalta apenas as suas diferenças em relação ao outro, na tentativa de criar a sua “identidade”, e também quando uma cultura ou grupo específico denigre a outra ou outro no intuito de fortalecer a sua visão parcial de mundo, hegemônica ou não. Na política, esse fenômeno cultural se acentuou com o surgimento dos Estados-nação, quando grupos econômicos fizeram a demarcação das fronteiras e também quando inventaram as chamadas identidades regionais, sempre com essa mesma finalidade. Essas culturas regionais, bastante influenciadas pela política, começaram a perder peso com a internacionalização do capital econômico e financeiro e, principalmente, a partir do final do século 20, no início da chamada época das globalizações (União Europeia, Mercosul etc.). Agora, com a intensificação dos intercâmbios e a cooperação entre os diferentes países, e com a popularização da internet, na prática esse fenômeno está se diluindo, embora ainda se manifeste com força em algumas regiões do planeta.

A região do Pampa, por exemplo, desde o século 19 teve forte presença de empresas “estrangeiras”, mas isso nem sempre é lembrado quando analisamos o discurso e a representação da cultura gauchesca. E, se não lembrarmos que essa região é habitada por descendentes de exilados, de imigrantes, de transplantados, de viajantes e de colonizadores, também não estaremos reconhecendo a diversidade étnica, artística e cultural “estrangeira” que formou esse território. No primeiro caso, podemos citar a presença dos saladeros e também dos grandes frigoríficos norte-americanos (Anglo, Armour e Wilson), que movimentaram a economia e a cultura regional e cuja época de pujança ainda povoa o imaginário das pessoas na fronteira do Brasil com o Uruguai. No segundo, podemos lembrar as heranças artísticas e culturais mouras, bascas, judaicas, catalãs e “castelhanas (de Castela)” que, após quase 800 anos de convivência na Península Ibérica e no norte da África, e que junto com os açorianos constituíram as primeiras ondas migratórias para a região, além dos povos bantos e sudaneses que foram escravizados e trazidos à força em navios, e que também contribuíram para alavancar a economia e para formar o imaginário regional. Sem esquecer os guaranis, os minuanos, os kaingangs e os charruas, que já habitavam a região, assim como aqueles que chegaram bem mais tarde, como são os casos dos italianos, dos alemães e, mais recentemente, dos jordanianos, dos palestinos e dos sírio-libaneses, entre outros.


Portanto, qualquer teoria sobre a cultura regional do gaúcho/gaucho não pode ignorar esse longo e diversificado processo migratório, sob pena de ela servir apenas para demarcar um território e/ou para fortalecer políticas culturais de grupos específicos. A esse fenômeno podemos chamar de nacional-regionalismo, estética de grupos e nunca de cultura regional.
 

A procura por uma identidade única apenas revelará uma visão “de fora” e aquilo que faz uma cultura ser diferente da do outro; não vai apresentar as suas singularidades mais profundas. A metáfora desenvolvida por Vitor Ramil no ensaio “A Estética do Frio”[1], por exemplo, representa uma grande contribuição para aprofundar tal reflexão e por revelar algumas diferenças entre a cultura existente no sul do Brasil (y en el Río de la Plata) e as culturas das regiões tropicais brasileiras, quando afirma que:
 

O frio é um grande diferencial entre nós e os “brasileiros”. E o tamanho da diferença que ele representa vai além do fato de que em nenhum lugar do Brasil sente-se tanto frio como no Sul. Por ser emblema de um clima de estações bem definidas – e de nossas próprias, íntimas estações; por determinar nossa cultura, nossos hábitos, ou movimentar nossa economia; por estar identificado com a nossa paisagem; por ambientar tanto o gaúcho existência-quase-romanesca, como também o rio-grandense e tudo o que não lhe é estranho; por isso tudo é que o frio, independente de não ser exclusivamente nosso, nos distingue das outras regiões do Brasil. O frio, fenômeno natural sempre presente na pauta da mídia nacional e, ao mesmo tempo, metáfora capaz de falar de nós de forma abrangente e definidora, simboliza o Rio Grande do Sul e é simbolizado por ele. (Conferência em Genebra, 2003).
 

O ensaio deixa claro que o frio não é exclusivo dos gaúchos/gauchos e que estes vivenciam as quatro estações do ano, mas também enseja leituras que podem levar a crer que o clima frio e a paisagem do pampa são determinantes na formação de uma “identidade” diferenciada. Ou seja, do ponto de vista subjetivo a metáfora não faz referência às heranças que os imigrantes da Península Ibérica trouxeram para a região, assim como os povos africanos e indígenas, entre outros. E, ao afirmar que a milonga “e seu chamado à interioridade” é a que fala dos “rio-grandenses com mais propriedade” em que se destacam “o rigor, a profundidade, a clareza, a concisão, a pureza, a leveza e a melancolia” o ensaio dá pouca importância para expressões populares, como as cerimônias de batuque, o carnaval, o candombe uruguaio, as festas quaranis e as tecno-festas que se realizam em diferentes centros urbanos.
 

É importante lembrar que essa elaboração metafórica de Vitor Ramil, como ele destaca no próprio ensaio, não pretendeu criar “em hipótese alguma, uma formulação normativa”, mas iniciar uma “uma reação ao estereótipo e seu peso, a reafirmação do antigo vínculo com os países vizinhos”. Portanto, o ensaio teve o objetivo de se diferenciar das culturas tropicais brasileiras e apontou para a necessidade de uma ruptura com a cultura hegemônica no estado do Rio Grande do Sul, que ainda valoriza as características tradicionais de regiões pastoris e que foi forjada no período de demarcação de fronteiras com os “castelhanos”. Aliás, a obra poética, literária e musical de Vitor Ramil, contêm várias conexões com outras formulações abertas, não dicotômicas, principalmente as de autores uruguaios e argentinos.
 

Mas é preciso ir muito além das questões geográficas, nacionais e/ou étnicas para reconhecer a diversidade cultural existente nesse e em outros territórios. É necessário superar aquele olhar “colonizado”, carregado de preconceitos morais e estéticos, até desenterrar o máximo de espelhos seculares que permanecem enterrados. Portanto, o desafio passa por resgatar e mezclar diferentes expressões artísticas e culturais, com os seus valores simbólicos e também com os seus prazeres estéticos e políticos. Uma visão “de fora” e de “colonizado” tende a adotar e a reforçar os estereótipos regionais e somente uma adesão ao campo da práxis será capaz de revirar essas arqueologias culturais.
 

Para reconhecer esses outros espelhos enterrados e revelar aspectos não dicotômicos da cultura que se formou às margens orientais do Rio Uruguai, seria um bom exercício responder algumas questões, tais como: Quais foram as contribuições de Cervantes ao escrever “nem tudo que reluz é ouro”, “as paredes tem ouvidos”, “uma andorinha só não faz verão” e “cavalo dado não se olha o pelo” e tantas outras citações presentes na obra Don Quijote de La Mancha? Como se refletem as traduções da Escola de Toledo, na Espanha moura/judaico/cristã, nesse caldo cultural multifacetado? Será que as traduções de Aristóteles, por Averróes, e o pensamento de Maimônides e de Sêneca são importantes para constituir uma visão “racional” e, ao mesmo tempo, “aberta” do mundo? Os povos indígenas, com a sua cosmovisão de realidade, influenciam o modo de vida do povo gaúcho/gaucho? Por que os habitantes dessa região utilizam a erva-mate (Ilex paraguariensis) como um símbolo de hospitalidade? Por que, entre os estados brasileiros, o Rio Grande do Sul possui o maior número de pessoas que se declaram adeptas à umbanda e ao candomblé? A espiritualidade dos descendentes dos povos africanos influencia a formação da subjetividade e da mitologia do sul? Por outro lado, em que medida a lenda cristã do El Cid influenciou o caudilhismo rio-grandense e platino? O quarto de empregada é um resquício da cultura Casa Grande e Senzala? Será que a Santa Inquisição, que durou até meados de 1800 na Espanha, e que perseguiu o povo judeu, assim como todos aqueles indivíduos considerados hereges, permanece viva no inconsciente coletivo dos(as) gaúchos/gauchos(as)?
 

É necessário reconhecer que há séculos um imaginário comum de convivência e conflitos culturais está latente nessa região e que a compreensão das suas histórias e das suas representações artísticas e literárias é importante para refletir sobre os mitos e o inconsciente coletivo desse povo. Mas, para isso acontecer, a realidade precisa mergulhar na ficção, nas ciências, nos rituais e nos mitos, para revelar as suas singularidades simbólicas e as suas diferentes subjetividades.
 

Contribuições como as de Cervantes, de José Hernández, de Érico Veríssimo, de Jorge Luis Borges, de Juana de Ybarbourou, de Julio Cortázar, de Ernesto Sábato, de Simões Lopes Neto, de Manoelito de Ornellas, de Ángel Rama, de Sandra Jatahy Pesavento, de Horacio Quiroga, de Juan Carlos Onetti, de Felisberto Hernández, de Alfonsina Storni, de Astor Piazzolla, de Anita Garibaldi, de Sepé Tiarajú, de Caio Fernando de Abreu, de Atahualpa Yupanqui, de Mercedes Sosa, de Jayme Caetano Braun, de Geraldo Flach e de Noel Guarany podem ser misturadas às de Eduardo Galeano, de Aldyr Garcia Schlee, de Cristina Peri Rossi, de Bebeto Alves, de Nei Lisboa, de Vitor Ramil, de Cintia Moscovich, de Jaime Roos, de Nelson Coelho de Castro, de Jane Tutikian, de Tabajara Ruas, de Charly Garcia, de Humberto Gessinger, de Jorge Drexler, de Dunia Elias, de Kevin Johansen, de Ruben Rada, de Fito Paez, de Lelia Almeida, de Hique Gomes, de Arthur de Faria, de Richard Serraria, de Marcelo Delacroix, de Dani Lopez, de Demétrio Xavier, de Leandro Maia, e de muitos outros, e reinventadas ao ritmo do candombe, da cumbia, da milonga, do tambor de sopapo, do jongo, do tango, do samba-canção, do rap, do punk e do rock, formando um movimento em espiral e assimétrico, para apresentar/representar reflexos da diversidade cultural dessa região.
 

Enfim, para essa cultura superar a sua fase dicotômica e para que os gaúchos/gauchos intensifiquem o diálogo com outros movimentos culturais planetários, será necessário reconstruir a representação e o discurso de ampla parte da sua população, cujos descendentes ainda não reconhecem as origens mais profundas dos seus costumes. O desafio passa necessariamente por repensar o passado e o presente, e acrescentar novos contornos à criação artística e cultural. E para isso acontecer será fundamental compreender que tanto o “nós” como os “outros” fazem parte da sua (in)formação cultural. Essa percepção vai depender de um olhar “de dentro”, prático, histórico e sensível, que seja capaz de juntar as partes com o todo. Que mergulhe no passado mais distante sem ficar preso nele. Que represente as culturas urbanas e que faça as suas conexões com as culturas rurais, e vice-versa. Que reconheça as quatro estações do ano e que utilize mais o E ao invés do OU. Desse modo, essas dimensões da cultura regional estarão reconhecendo as suas características universais e, ao mesmo tempo, se libertando de representações fechadas e dicotômicas, portanto, sem permanecer presa às nacionalidades, às etnias, à geografia e nem ao passado.


[1] Na apresentação do ensaio A Estética do Frio, Vitor Ramil disse: “Do tema, a estética do frio, não se pretende, em hipótese alguma, uma formulação normativa. As ideias aqui expostas são fruto da minha intuição e do que minha experiência reconhece como senso comum. A extensão do assunto e o pouco tempo para expô-lo não me permitem desenvolver suficientemente alguns pontos. Mas convido a todos para um debate após esta exposição, para que possamos retomar o que for de seu interesse e compartilhar novas reflexões”. Nesse sentido, o ensaio também propõe que sejam realizadas novas reflexões sobre a cultura existente no sul do Brasil. Escolhi usá-lo como exemplo por considerá-lo como uma das melhores reflexões já escritas e também porque ele reconheceu o meu imaginário e o da minha geração.

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