As invasões bárbaras - Por uma vida digna!

Escrito por Ricardo Almeida


Afinal, vivemos ou não num grande hospital? Essa é uma das perguntas que devemos fazer ao assistir este belo filme canadense. Se é verdade que as pessoas só se preocupam em prolongar a vida o máximo possível, sem dar um sentido digno para ela, essa metáfora do diretor Denys Arcand tem um alto grau de importância e de veracidade. Segundo essa visão, a grande maioria das pessoas já aceitou que a vida não lhes pertence mais e estamos delegando a responsabilidade sobre ela para outras pessoas. Hoje, para obtermos “saúde” (sic) e “felicidade” (sic), é só procurar a ajuda de médicos, psicólogos, psiquiatras, gurus, personal trainers, enfermeiras, políticos profissionais etc. etc. etc.

Ao mesmo tempo, o filme faz diversas referências às nossas atuais ameaças externas (inclusive no título) . Um exemplo foi o ataque às Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 2001, que significou um revide aos norte americanos, mas também uma demonstração clara e objetiva do novo tipo de barbárie que a civilização está vivenciando. Tudo com um certo sabor de vingança e com um grande apelo e prazer midiático. O mesmo vale para os ataques de Bush ao Iraque e para os massacres ocorridos durante a revolução chinesa de Mao Tsé Tung.

Segundo Arcand, a morte banal de milhares de civis e inocentes tem sido a tônica do mundo contemporâneo, assim como também a morte de pessoas desiludidas com a vida. Mas, propositalmente, o filme nos convence que o século XX, com todos os conflitos, contradições e tecnologias mortais (campos de concentração, câmara de gás, napalm, fuzilamentos, bomba atômica etc.) não foi o período mais violento do processo "civilizatório", pois na época das grandes navegações e descobrimentos, na nossa América do Sul e na do Norte, foram massacrados mais de 200 milhões de índios. Com um detalhe: "foram mortos a machadadas!" Vejo isso como um primeiro alento do diretor.

No geral, essa reflexão contextualizada e complexa serve como pano de fundo do filme, amarrada por um belo roteiro minuciosamente construído. Mas isso, dizem alguns, fica bastante submerso na trama, já que Arcand resolveu destacar simbolicamente o maior tabu da sociedade ocidental (lembrem que o tabu da sexualidade a nossa geração já conseguiu derrubar), que é a reflexão sobre a possibilidade de uma morte digna. Ou melhor: de ter uma vida digna... Quer dizer, daquilo que você quiser, desde que não seja solitário(a) num quarto frio deste "grande hospital". 
Eu sei que falar em morte aqui no ocidente é quase uma heresia, pois a maioria das pessoas prefere se iludir que irá viver para sempre. Sei também que a sociedade de consumo trata o ser humano como “uma coisa”, e que muitas "coisas" apenas possuem um valor monetário e de troca, como se fôssemos um depósito de informações, sem nenhum conhecimento e/ou sabedoria. As maioria das pessoas está vendo a vida apenas como um prazer infinito, sem sofrimentos! E nós embarcamos juntos dentro deste sofisticado furacão midiático e social.

       No filme competem harmonicamente essas duas visões simultâneas do diretor: a psicológica (individual) e a externa (contexto social), representada pelas ameaças que não dependem somente dos nossos desejos. Por exemplo, o personagem central  é um professor e intelectual de esquerda que está morrendo juntamente com o sistema de ideias que ele representa. De outro lado, está o seu filho yupie, que quer comprar tudo e todos (diretora do hospital¸ dirigente sindical, a garota usuária de drogas e alguns ex-alunos) para proporcionar uma morte mais tranquila para o pai. Só que nesse afã, ele acaba contratando uma jovem usuária de heroína para aplicar injeções da droga no pai, e assim, diminuir o seu sofrimento. Vê-se que o plano dá certo, mas, ironicamente, nessa convivência eles conseguem revisar os seus valores e ela descobre um significado mais digno para vida. Aliás, no final (dá para contar o final?) essa personagem, já se recuperando da dependência, vai viver numa casa herdada do professor, onde estão os seus livros (História e Utopia, O Arquipélago de Gulag e outros que eu ainda não conheço...), o que avaliza essa minha conclusão parcial. E por isso, talvez, esse trabalho tenha lhe rendido o prêmio de melhor atriz em Cannes, já que, para mim, todos estavam maravilhosos e convincentes.
Esse filme é fatalista e desesperançoso? Acho que a resposta se encontra no rumo que tomaram as duas jovens personagens femininas do filme. A primeira já foi citada, e a outra vem da filha do professor, que se revela quando esta diz via internet: “sou uma mulher feliz¸ achei o meu lugar. Não sei como você fez, mas conseguiu me transmitir o seu apetite pela vida“. A frase me pareceu como um sopro de esperança do diretor, pois ela foi dita num veleiro e tendo um imenso oceano ao fundo. Vi como uma analogia ao nosso futuro, cheio de dúvidas e de incertezas. Ainda mais que o diretor dedicou o filme à sua filha.

          Embora Invasões Bárbaras proponha diversas reflexões importantes, o momento que mais chama a atenção do grande público é quando o personagem terminal diz tranquilamente para os seus velhos amigos e amigas: “Eu tive muito prazer em viver essa modesta vida na compainha de vocês, queridos amigos. É o sorriso de vocês que vou levar comigo”. Ou seja, ele consegue resgatar as suas principais relações e ter uma despedida digna do filho e dos(as) amigos(as), superando a dificuldade em abraçar e ouvir diferentes pontos de vista. Desse modo, a sua morte também não foi ocultada de ninguém.
  Dizem que quando a gente está à beira da morte, passa um filme na nossa cabeça. E quando um sistema de ideias morre, não deveria acontecer o mesmo? Acho que isso dependeria da revisão e da destruição dos dogmas e tabus que nos imobilizam, assim como da mudança de um ponto de vista, do propósito e dos valores.

          Veja o trailer do filme no link:
NOS BASTIDORES: O diretor disse em entrevista que a civilização está declinando, pois "o mundo de hoje é caracterizado por uma burrice total”. Nesse ponto eu não concordo. Acho que ele esqueceu que na Idade Média, na escravidão do século 19 e em outras épocas obscuras, a humanidade (como um todo) não tinha tanta informação e nunca esteve tão democratizada como hoje. Para mim, o que acontece é que não sabemos lidar com tanta INFORMAÇÃO e não entendemos quase nada sobre o papel do Estado, dos governos e da sociedade civil. Assim, nos sentimos ORFÃOS e permanecemos PERPLEXOS e confusos diante desta nova realidade. Mas concordo que o conhecimento cientificista nos armou muitas armadilhas dogmáticas (“ismos”) e acabamos substituíndo o “egoísta divino” pelo “eu egoísta” e depois houve a volta do “nosso egoísta divino”. Somente com a MORTE dos PARADIGMAS que nortearam a nossa geração é que fomos capazes de ver a vida como uma "grande possibilidade" e não mais como uma "certeza". O problema é que alguns "manuais" e discursos ainda são deterministas e não revelam as contradições deste mundo CAÓRDICO.
Uma observação: Quem quiser aprofundar mais sobre a dignidade e a superficialidade da vida contemporânea pode assistir o fraquinho Declínio do Império Americano, do mesmo diretor, para identificar alguns prazeres egoístas da sociedade moderna ocidental.

7 comentários:

  1. Reflexão muito interessante, Vagareza. Só discordo da tua avaliação do "Declínio...". Eu gosto bastante. Acho esperto, divertido e sensível o retrato que ele faz dos "prazeres egoístas da sociedade moderna ocidental". A propósito, qual o significado de "caórdico"? Não encontrei nos dicionários. Abraços, Gastal

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  2. Parabéns pelo Blog. Além de apreciar e postar algo, vou divulgar.
    Abraços
    Renato Grassi

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  3. Conheci o termo Caórdico quando li Nascimento da Era Caórdica, de Dee Hock. Um belo livro para quem lida com organizações e projetos. Abraços. Ricardo

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  4. Muito bom o teu trabalho R.Almeida.

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  5. Gastal, achei o "Declínio..." um bom filme (razoável)... gostei mais dos papos e da subjetividade das personagens. .. Mas, como se trata de cinema, fico mais exigente...quero ver a trama, o roteiro, a fotografia e outros elementos. Só por isso não considerei um GRANDE filme. E acho que o filme também não contextualiza. Por isso! Mas o importante é isso mesmo, termos olhares em movimento sobre um mesmo assunto. Valeu pelo teu comentário no blog. Um grande abraço. Ricardo Almeida

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  6. dirce siqueira carvalho20 de junho de 2009 às 09:15

    Há um link entre esses dois filmes "Invasões Bárbaras " e " A Vida dos Outros".Mesmo com uma diferença temporal de vinte anos, e com as historias acontecendo do lado de lá e do lado de cá do muro, fica explícita a frustração dos personagens, com os rumos que se transformaram as práticas de seus ideais.
    Os personagens em ambos os filmes, militantes dos anos sessenta, tornam-se vítimas de algumas mazelas sociais, resultantes dos regimes políticos vigentes.Cabe aqui uma simples pergunta: teoria e prática estão sempre em desajuste?É dificil encarar esta realidade?

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  7. Oi Dirce. Gostei de ler o teu comentário, pois tb acho que o cinema e os consumidores ainda estão tentando entender o que ocorreu na política do século 20. Mas não concordo que os personagens estejam frustados, ao menos no Invasões Bárbaras... Entendi que o personagem teve uma morte digna ao reconhecer a morte de seus paradigmas. Já A Vida dos Outros vi como uma denúncia, uma crítica ao Leste Europeu durante a Guerra Fria. Também não vi desajuste entre a teoria e a prática, muito pelo contrário. A idéia de FIM DA HISTÓRIA, da DESTRUIçÂO DO ESTADO e do PARTIDO ÚNICO foram teorias que entraram em contradição com a DIALÈTICA e a PRÁXIS, entre outras. A filosofia entrou em contradição com a formulação política, e segue acontecendo muito CTRL C + CTRL V por aí. Enfim, recém estamos nos libertando das quimeras inventadas e elaborando novos conceitos. Eu gosto muito de ler Edgar Morin, Norberto Bobbio, Jurgen Habermas e Hannah Arendt. Ou seja, não sou contra e nem a favor de Marx. Acho que se ele estivesse vivo, não seria mais marxista.

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